maio 242015
 

O que sinto na gestação do poema? Aponta o lápis que já te digo: que bom se não desse diabetes na minha família, se a doença de Chagas parasse de matar meu povo. A tia não tem, o tio tem, a prima tem, o primo também, a avô, a avó, o irmão tem. Que bom se não desse cáries. O mal de Parkinson ensinou nós todos a dançar. Minha infeliz tia, que em solteira foi, por oito vezes consecutivas, presidente das Filhas de Maria, peleja para comprar uma portinha que vende pão, pirulito e guaraná divinópolis, pro filho dela tomar conta, porque ele não pode com serviço pesado. Ela tem doze mil que sobrou do lote que ela vendeu por trinta, mas a diaba da dona do boteco só vende a espelunca por vinte e cinco, a exploradeira. O meu filho adorado saiu de casa para estudar na escola “Seu saber é pra vencer”. Escola parece guerra. Deixava ele em casa, se pudesse. Que bom seu eu tivesse a saúde pra um fogão de lenha. Levantava cedo e acordava os meus homens: ôi gente, café tá esperando, ninguém vai para a roça hoje não? Levanta Francisco, levanta José, Antônio levanta, Rosa e Maria ficam pra torrar a farinha. O dia cheio, a noite com o crescente no céu, a cafeteira no canto do fogão. No pasto tem cobras, mas no céu tem São Brás e na guarda de cada um o Santo Anjo do Senhor. Eu queria a saia rodada até no pé, eu bonita, mesmo com o cabelo branqueando, a vaidade da prender ele num coque amarrado num lenço de seda para amaciar e proteger da poeira. Sou patronesse da festa de caridade. No meio do jantar eles dizem o meu nome, vou lá na frente com uma etiqueta no peito. Batem palmas pra mim e se estabelece entre nós uma aversão tão grande, o pus da festa se forma, ameaçando a entornar. Aproveito que estou no palco e começo: a verdadeira caridade… Mas então eles põem o som altíssimo e sorteiam os brindes. Sou a primeira e melhor premiada. Batem mais palmas pra mim. Senhor, senhor, porque me abandonaste? O que vai ser de nós? Do meu particular destino? Dos filhos que eu gerei? Visito um por um nas suas camas: Deus te abençoe, Deus te abençoe, volte para ti o Seu rosto, proteja-se contra a escola, a filantropia, o vírus, contra meu triste e errado amor. Vinga o pinto no ovo, vingam as sete crias da cadela ganindo na poeira. Por que não vingará o que Cristo remiu, o que a água do Batismo e seu Sal e seu Óleo prometeram preservar? Meu óvulo cariado trasnmite com precisão a doença ancestral. Os nosso filhos iam ser perfeitos. De asséptico amálgama antecipamos seus cabelos de seda. Reveladores do seu puro sangue iam ser os seus dentes. Que houve então? Este espanto não se pode esconder, não é mesmo? Olha-os dormindo: lábios e pálpebras mal fechados mostram a pupila atingida, o dente partido em diagonal, o leve tremor do que, no sono, insiste nas palavras do seu sonho. Legados com equanimidade os apodrecimentos de nossos pais. Mais que a asma atávica, o medo. Mais que o medo, a palavra cruel que ainda não vão aprender; a forma bruta de olhar. Em culpa, não saber e até com alegria os geramos, os que iam ser deuses. Acaso os desvelamos? Ou existir é que assim irreparável? Por eles nosso amor e a pele do nosso rosto se confrangem, principalmente quando dormem, vulneráveis como homens. Amor eu disse. Não é este o nome do que nunca desiste de soprar uma forma sobre o barro? Galharda, olímpica, passo à frente, esquecida, entre suspiros e cantar d’amores, seu fogo infátuo, o pecado original. Pelo reino deste mundo meu coração suspira, pela saudável beleza, pela longa vida, meus filhos, rebentos de oliveira, ao redor da minha mesa. Não fiz o mundo mas tenho que carregá-lo. Que bom se eu só pudesse gozar. Por uma parte respondo, da outra e maior Deus cuida. Pode-se rezar contra a peste, a fome, a guerra, lutar gota a gota contra o invisível inimigo, na carne, nos corredores da alma, pondo tropeços no amor. Você dá o remédio a seu doente, a gota pinga na barba e cristaliza-se, o sol bate nela, ela rebrilha e seu coração reflui de uma não tristeza, alegria sem guizos, paciência. A ovelha pronta para o sacrifício, ela sabe balir, ela sabe falar, ela escreve, vai parir o poema, começar tudo outra vez.

Adélia Prado – Solte os cachorros

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