Claro que está tudo errado, qualquer sacristão bobo sabe disso

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maio 222016
 

O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigado bem o meu quintal, porque hoje me gritou: “do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a senhora quer vender umas panelas pra ela.” Me desgostou muito a forma de pedir, o pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do Osmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendo que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pra tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi uma bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventei um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que o dono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos são limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não. Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração pedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo no que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra Dona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho pagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse sem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me pedir cinqüenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra lá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim: “Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar.” Posso mesmo. Por que então, meu Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas fico dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateada com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu vivia acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agora envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo mais uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquer sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos da terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive. Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: “do-o-na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?” Este batido durou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depois foi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com Dona Alvina. Bibia falava: “mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a senhora e o pai muito bobos.” Não podia aplaudir a menina, mas por seguro matutamos: a voz das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa da Alvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas onde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar a taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que ele arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem se lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele é inteira.

 

adélia prado

instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar

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jan 202016
 

«AS MULHERES TÊM FIOS DESLIGADOS
-António Lobo Antunes

Há uns tempos a Joana
-Pai, acabei um namoro à homem
Perguntei como era acabar um namoro à homem e vai a miúda
– Disse-lhe o problema não está em ti, está em mim
O que me fez pensar como as mulheres são corajosas e os homens cobardes. Em primeiro lugar só terminam uma relação quando têm outra. Em segundo lugar são incapazes de
-já não gosto de ti
De
-não quero mais
Chegam com discursos vagos, circulares
-preciso de tempo para pensar
-não é que não te ame, amo-te, mas tenho de ficar sozinho umas semanas
Ou declarações do género de
– tu mereces melhor
-estive a reflectir e acho que já não te faço feliz
-necessito de um mês de solidão para sentir a tua falta
E aos amigos
-dá-me os parabéns que lá consegui livrar-me da chata
-custou mas foi
-amandei-lhe aquelas lérias do costume e a gaja engoliu
-chora um dia ou dois e passa-lhe
E pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres. Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam: entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar (chichi, sede, fome, a janela de que esqueceram de fechar o estore ) ou fingem que dormem porque não há paciência para abraços e festinhas, pá e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarrados à gente, no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo? Lembro-me de um sujeito que explicava
– o maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é pensar que durante uma semana estou safo
E depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las.
O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
– as mulheres têm os fios desligados
E outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa pare que comecem a trabalhar outra vez. Meus Deus, que pena me dão as mulheres. Se informam
-já não gosto de ti
Se informam
-não quero mais
Aí estão eles alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos, ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores, eles que nunca mandavam a colocarem-se de plantão À porta dado que aquela p*** há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes-pagas, cenas ridículas, gritos. A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, Che Guevara ou eu, e eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhes caia na sorte um caramelo que passe À frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede-fome-persianas-mal-descidas-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
– O problema não está em ti está em mim a mexerem a faca na mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Schubert. De Ovídio. De Horácio, de Vergílio. De Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde idiota, desonesto.
Fui
(espero que não muitas vezes)
rasca. Volta e meia surge-me na cabeça uma frase do Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde de mais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc…, que mulher não ouviu bugigangas destas? Uma mulher contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
– mereces melhor que eu
levou com a resposta
– pois mereço. Rua.
Enfim, mais ou menos isto, e estou a ver a cara dele à banda. Nem uma lágrima para amostra. Rua. A mesma lágrima para amostra. Rua. A mesma amiga para uma amiga sua.
– o que faço às cartas de amor que me escreveu?
e a amiga sua
– Manda-lhas. Pode ser que façam falta.
Fazem de certeza: é só copiar mudando o nome. Perguntei à minha amiga
– E depois de ele se ir embora?
– Depois chorei um bocado e passou-me.
Ontem jantámos juntos. Fumámos um cigarro no automóvel dela, fui para casa e comecei a escrever isto. Palavra de honra que vi na janela uma árvore a sorrir-me. Podem não acreditar mas uma árvore a sorrir-me.»

é preciso não ter medo de mostrar o osso e arriscar-se a perder a carne.

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nov 212015
 

Onde cheira a merda
cheira a ser.
o homem podia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto.
(…)
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um osso,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.
(…)
Dois caminhos estavam diante dele:
o do infinito de fora
o do ínfimo de dentro.
E ele escolheu o ínfimo de dentro
onde basta espremer
o pâncreas,
a língua,
o ânus,
ou a glande.
E deus, o próprio deus espremeu o movimento.
É deus um ser?
Se o for, é merda.
Se não o for,
não é.

artaud

passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer

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nov 162015
 

O menino que atravessava paredes

Rubi atravessava paredes. Durante os quatro primeiros anos do ensino básico sentou-se sempre à minha frente. Era um menino muito magro, com uns olhos alheados, voz sumida, que preferia ficar sozinho, nos recreios, lendo, do que juntar-se a nós nas brincadeiras. Uma tarde, Chantal anunciou que o vira a passar da sala para o corredor através da parede. Chantal era loira e francesa, a única loira e a única francesa da escola. Isso dava-lhe uma estranha credibilidade. Além disso acho que todos nós estávamos apaixonados por ela.

A seguir a Chantal foi Aristóteles. Aristóteles era sobrinho da proprietária da escola, uma senhora de origem grega, incrivelmente corajosa, ligada ao movimento nacionalista. Em 1992, quando a guerra civil recomeçou, ela foi baleada no rosto e num braço e quase morreu. Fui visitá-la ao hospital. Esperava encontrar a mulher enorme e poderosa que durante anos, muito depois de eu ter deixado o Huambo, me perseguia em sonhos, agitando uma pesada palmatória. Ao invés disso, dei com uma velhinha cansada, tímida, de voz suave. Aristóteles, que tinha a mesma reputação de seriedade da tia, jurava a pés juntos ter visto Rubi atravessar o muro do pátio, enquanto corria atrás de uma bola de futebol.

Quando voltei ao Huambo, mais de 20 anos depois, a cidade encolhera. O meu bairro encolhera. Só as árvores mantinham a proporção original. O pátio da escola, que antes era imenso, parecia agora um pequeno quintal, que uma mangueira, densa e enorme como uma floresta, ameaçava engolir. Encontrei Rubi numa festa, em casa de amigos comuns.

“Diziam que tu atravessavas paredes!” — comentei, quase no fim da festa, depois que a cerveja acabou. Rubi olhou-me muito sério. Os olhos eram ainda os mesmos, absortos e parados, como uma tarde de domingo, sob o sol. Mas só os olhos eram os mesmos. Crescera, engordara, arrastava a voz:

“Diziam isso? De ti diziam que vias no escuro, como os gatos. Naquela época todos nós tínhamos super poderes.” Ficou um instante em silêncio, agitando diante dos meus olhos o copo vazio: “Ainda faço isso. Mas pouco.”

“Isso o quê?”

“Isso de que falavas. Atravessar paredes.”

“Como? Qual o truque?”

“Naquela época não pensava nelas, nas paredes. Ignorava-as. A lua só existe porque olhamos para ela.”

Einstein disse algo semelhante, mas sob a forma de pergunta e em jeito de troça, porque lhe custava a crer em algumas das teses mais bizarras da mecânica quântica. Talvez o meu amigo se interessasse por mecânica quântica.

“Não te deves lembrar, eu lia muito” — prosseguiu Rubi. — “Ler é que me ajudava a atravessar paredes. Mas então o meu pai morreu e eu tive de começar a trabalhar na padaria da família, muito novo, e nunca mais voltei a ler. Comecei a ver paredes em toda a parte. Tinha de andar à procura de portas, mas nem todas essas paredes tinham portas. Um dia acordei, e não me conseguia mexer.”

“Como assim?”

“Assim, simplesmente. Não me conseguia mexer. Levaram-me ao hospital, mas os médicos não encontraram nada de errado. É psicossomático, disseram. Nos primeiros tempos eu dormia, sonhava, e a sonhar andava, corria. Mas passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer.”

“O que aconteceu depois?”

“A minha irmã começou a ler para mim e pouco a pouco voltei ao normal.”

Rubi administra hoje uma rede de padarias. Além disso cria periquitos. Vive dividido entre pães e periquitos. Disse-me que morava sozinho num casarão enorme, do outro lado da rua. Foi só quando se levantou que eu percebi que bebera demais. Amparei-o até a casa e ajudei-o a abrir a porta. O meu antigo colega pousou em mim os olhos lentos. Espetou o dedo indicador da mão direita no meu umbigo:

“Com o tempo a gente descobre que há paredes que estão mesmo lá” — disse. — “Essas ninguém consegue atravessar. Mas há outras que só estão lá quando olhamos para elas, somos nós que as criamos. Essas eu continuo a atravessar.”

Voltei a encontrá-lo uma semana mais tarde, n

O menino que atravessava paredes

Rubi atravessava paredes. Durante os quatro primeiros anos do ensino básico sentou-se sempre à minha frente. Era um menino muito magro, com uns olhos alheados, voz sumida, que preferia ficar sozinho, nos recreios, lendo, do que juntar-se a nós nas brincadeiras. Uma tarde, Chantal anunciou que o vira a passar da sala para o corredor através da parede. Chantal era loira e francesa, a única loira e a única francesa da escola. Isso dava-lhe uma estranha credibilidade. Além disso acho que todos nós estávamos apaixonados por ela.

A seguir a Chantal foi Aristóteles. Aristóteles era sobrinho da proprietária da escola, uma senhora de origem grega, incrivelmente corajosa, ligada ao movimento nacionalista. Em 1992, quando a guerra civil recomeçou, ela foi baleada no rosto e num braço e quase morreu. Fui visitá-la ao hospital. Esperava encontrar a mulher enorme e poderosa que durante anos, muito depois de eu ter deixado o Huambo, me perseguia em sonhos, agitando uma pesada palmatória. Ao invés disso, dei com uma velhinha cansada, tímida, de voz suave. Aristóteles, que tinha a mesma reputação de seriedade da tia, jurava a pés juntos ter visto Rubi atravessar o muro do pátio, enquanto corria atrás de uma bola de futebol.

Quando voltei ao Huambo, mais de 20 anos depois, a cidade encolhera. O meu bairro encolhera. Só as árvores mantinham a proporção original. O pátio da escola, que antes era imenso, parecia agora um pequeno quintal, que uma mangueira, densa e enorme como uma floresta, ameaçava engolir. Encontrei Rubi numa festa, em casa de amigos comuns.

“Diziam que tu atravessavas paredes!” — comentei, quase no fim da festa, depois que a cerveja acabou. Rubi olhou-me muito sério. Os olhos eram ainda os mesmos, absortos e parados, como uma tarde de domingo, sob o sol. Mas só os olhos eram os mesmos. Crescera, engordara, arrastava a voz:

“Diziam isso? De ti diziam que vias no escuro, como os gatos. Naquela época todos nós tínhamos super poderes.” Ficou um instante em silêncio, agitando diante dos meus olhos o copo vazio: “Ainda faço isso. Mas pouco.”

“Isso o quê?”

“Isso de que falavas. Atravessar paredes.”

“Como? Qual o truque?”

“Naquela época não pensava nelas, nas paredes. Ignorava-as. A lua só existe porque olhamos para ela.”

Einstein disse algo semelhante, mas sob a forma de pergunta e em jeito de troça, porque lhe custava a crer em algumas das teses mais bizarras da mecânica quântica. Talvez o meu amigo se interessasse por mecânica quântica.

“Não te deves lembrar, eu lia muito” — prosseguiu Rubi. — “Ler é que me ajudava a atravessar paredes. Mas então o meu pai morreu e eu tive de começar a trabalhar na padaria da família, muito novo, e nunca mais voltei a ler. Comecei a ver paredes em toda a parte. Tinha de andar à procura de portas, mas nem todas essas paredes tinham portas. Um dia acordei, e não me conseguia mexer.”

“Como assim?”

“Assim, simplesmente. Não me conseguia mexer. Levaram-me ao hospital, mas os médicos não encontraram nada de errado. É psicossomático, disseram. Nos primeiros tempos eu dormia, sonhava, e a sonhar andava, corria. Mas passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer.”

“O que aconteceu depois?”

“A minha irmã começou a ler para mim e pouco a pouco voltei ao normal.”

Rubi administra hoje uma rede de padarias. Além disso cria periquitos. Vive dividido entre pães e periquitos. Disse-me que morava sozinho num casarão enorme, do outro lado da rua. Foi só quando se levantou que eu percebi que bebera demais. Amparei-o até a casa e ajudei-o a abrir a porta. O meu antigo colega pousou em mim os olhos lentos. Espetou o dedo indicador da mão direita no meu umbigo:

“Com o tempo a gente descobre que há paredes que estão mesmo lá” — disse. — “Essas ninguém consegue atravessar. Mas há outras que só estão lá quando olhamos para elas, somos nós que as criamos. Essas eu continuo a atravessar.”

Voltei a encontrá-lo uma semana mais tarde, numa outra festa, mas dessa vez estava sóbrio, muito bem vestido e penteado. Cumprimentou-me com certa distância. Quando lhe perguntei, meio a sério, meio a brincar, se nesse dia tinha atravessado alguma parede, fingiu não entender. Ou talvez não tenha entendido mesmo. Alguém me disse, anos mais tarde, que Rubi inventa muito quando bebe e que depois de sóbrio não se lembra de nada. Pode ser.

José Eduardo Agualusa – 16.11.15

eu não me farei mais perguntas

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nov 142015
 

Onde agora? Quando agora? Quem agora? Sem me perguntar isso. Dizer eu. Sem o pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir adiante. Pode ser que um dia, primeiro passo, vá, eu tenha simplesmente ficado, no qual, em vez de sair, segundo um velhohábito, passar o dia e a noite tão longe quanto possível de casa, não era longe. Pode ter começado assim. Eu não me farei mais perguntas.

beckett – o inominável

eu faria delas o que elas devem ser

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ago 232015
 

começa pelo olho, mas em breve é tudo. Uma poeira que cai ou rebenta nas superfícies. Se tivesse a certeza de que ao fim destas palavras meu corpo rolasse fulminado, eu faria delas o que elas devem ser, eu as conduziria a sua última ignição, eu concluiria o ciclo de seu tempo, levaria ao fim o impulso inicial estagnado nesta aridez utilitária em cujo púcaro as forças se destroem. Ou não faria. Não faria: uma vileza inata a meu ser trai em seu fulcro todo movimento para fora de mim: porque este é um tempo meu, e eu sou a fome e o alimento de meu cansaço: e eu sou esse cansaço comendo o meu peito. Porque eu sou só o clarão dessa carnificina, o halo desse espetáculo da ideia. Sou a força contra essa imobilidade e o fogo obscuro minando com a sua língua a fonte dessa força. Estamos no reino da palavra, e tudo que aqui sopra é verbo, e uma solidão irremissível.

o inferno – gullar

é uma mera questão de tempo

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ago 062015
 

Em poucas palavras se conta, e aqui a vamos deixar para ilustração das novas gerações que a desconhecem, com a esperança de que não trocem dela por ingénua e sentimental. Atenção, pois, à lição de moral. Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho.
Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia.
Estavam as cousas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos.
E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos.
No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tornou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô.
Foram palavras santas. Caíram as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai já não.
Do que veio a passar-se depois não há sinal na história, mas de ciência mui certa sabemos que se é verdade que o trabalho do rapazinho ficou em meio, também é verdade que o pedaço de madeira continua a andar por ali. Ninguém o quis queimar ou deitar fora, quer fosse para que a lição do exemplo não viesse a cair no esquecimento, quer fosse para o caso de que a alguém lhe ocorresse um dia a ideia de terminar a obra, eventualidade não de todo impossível de produzir-se se tivermos em conta a enorme capacidade de sobrevivência dos ditos lados escuros da natureza humana.
Como já alguém disse, tudo o que possa suceder, sucederá, é uma mera questão de tempo, e, se não chegámos a vê-lo enquanto por cá andávamos, terá sido só porque não tínhamos vivido o suficiente.

As intermitências da morte – Saramago

como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos outonos pretéritos

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jul 252015
 

Os lares para a terceira e quarta idades, essas benfazejas
instituições criadas em atenção à tranquilidade das famílias que não têm tempo nem paciência para limpar os ranhos, atender aos esfíncteres fatigados e levantar-se de noite para chegar a arrastadeira, também não tardaram, tal como já o haviam feito os hospitais e as agências funerárias, a vir bater com a cabeça no muro das lamentações. Fazendo justiça a quem se deve, temos de reconhecer que a incerteza em que se encontravam divididos, isto é, continuar ou não continuar a receber hóspedes, era uma das mais angustiantes que poderiam desafiar os esforços equitativos e o talento planificador de qualquer gestor de recursos humanos.
Principalmente porque o resultado final, e isso é o que caracteriza os autênticos dilemas, iria ser sempre o mesmo. Habituados até agora, tal como os seus queixosos parceiros da injecção intravenosa e da coroa de flores com fita roxa, à segurança resultante da contínua e imparável rotação de vidas e mortes, umas que vinham entrando, outras que iam saindo, os lares da terceira e quarta idades não queriam nem pensar num futuro de trabalho em que os objectos dos seus cuidados não mudariam nunca de cara e de corpo, salvo para exibí-los mais lamentáveis em cada dia que passasse, mais decadentes, mais tristemente descompostos, o rosto enrugando-se, prega a prega, igual que uma passa de uva, os membros trémulos e duvidosos, como um barco que inutilmente andasse à procura da bússola que lhe tinha caído ao mar. Um novo hóspede sempre havia sido motivo de regozijo para os lares do feliz ocaso, tinha um nome que seria preciso fixar na memória, hábitos próprios trazidos do mundo exterior, manias que eram só dele, como um certo funcionário aposentado que todos os dias tinha de lavar a fundo a escova de dentes porque não suportava ver nela restos da pasta dentífrica, ou aquela anciã que desenhava árvores genealógicas da sua família e nunca acertava com os nomes que deveria pendurar nos ramos. Durante algumas semanas, até que a rotina nivelasse a atenção devida aos internados, ele seria o novo, o benjamim do grupo, e iria sê-lo pela última vez na vida, ainda que durando ela tanto como a eternidade, esta que, como do sol costuma dizer-se, passou a brilhar para toda a gente deste país afortunado, nós que veremos extinguir-se o astro do dia e continuaremos vivos, ninguém sabe como nem porquê. Agora, porém, o novo hóspede, excepto se ainda veio preencher alguma vaga e arredondar a receita do lar, é alguém cujo destino se conhece de antemão, não o veremos sair daqui para ir morrer a casa ou ao
hospital como acontecia nos bons tempos, enquanto os outros
hóspedes fechavam à chave apressadamente a porta dos seus quartos para que a morte não entrasse e os levasse também a eles, já sabemos que tudo isto são cousas de um passado que não voltará, mas alguém do governo terá de pensar na nossa sorte, nós, patrão, gerente e empregados dos lares do feliz ocaso, o destino que nos espera é não termos ninguém que nos acolha quando chegar a hora em que tenhamos de baixar os braços, reparai que nem sequer somos senhores daquilo que de alguma maneira também havia sido nosso, ao menos pelo trabalho que nos deu durante anos e anos, aqui deverá perceber-se que os empregados tomaram a palavra, o que queremos dizer é que não haverá sítio para estes que somos nos lares do feliz ocaso, salvo se pusermos de lá para fora uns quantos hóspedes, ao governo já lhe tinha ocorrido a mesma ideia quando foi daquele debate sobre a pletora dos hospitais, que a família reassuma as suas obrigações, disseram, mas para isso seria necessário que ainda se encontrasse nela alguém com suficiente tino na cabeça e energias bastantes no resto do corpo, dons cujo prazo de validade, como sabemos por experiência própria e pelo panorama que o mundo oferece, têm a duração de um suspiro se o compararmos com esta eternidade recentemente inaugurada, o remédio, salvo opinião mais abalizada, seria multiplicar os lares do feliz ocaso, não como até agora, aproveitando vivendas e palacetes que em tempos conheceram melhor sorte, mas construindo de raiz grandes edifícios, com a forma de um pentágono, por exemplo, de uma torre de babel, de um labirinto de cnossos, primeiro bairros, depois cidades, depois metrópoles, ou, usando palavras mais cruas, cemitérios de vivos onde a fatal e irrenunciável velhice seria cuidada como deus quisesse, até não se sabe quando, pois os seus dias não teriam fim, o problema bicudo, e para ele nos sentimos no dever de chamar a atenção de quem de direito, é que, como passar do tempo, não só haverá cada vez mais idosos internados nos lares do feliz ocaso, como também será necessária cada vez mais gente para tomar conta deles, dando em resultado que o rombóide das idades virará rapidamente os pés pela cabeça, uma massa gigantesca de velhos lá em cima, sempre em crescimento, engolindo como uma serpente pitão as novas gerações, as quais, por sua vez, na sua maioria convertidas em pessoal de assistência e administração dos lares do feliz ocaso, depois de terem gasto a melhor parte da sua vida a cuidar de velhorros de todas as idades, quer as normais, quer as matusalénicas, multidões de pais, avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós, hexavós, e por aí fora, ad infinitum, se juntarão, uma atrás de outra, como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos outonos pretéritos, mais oü sont les neiges d’antan, do formigueiro interminável dos que, pouco a pouco,levaram a vida a perder os dentes e o cabelo, das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados, dos catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos, dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar nem a baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências, senhores que nos governam, talvez não nos queiram crer, mas o que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e tremor, se terá visto semelhante cousa, dizemo-lo nós que temos a experiência do primeiro lar do feliz ocaso, é certo que então tudo era em ponto pequeno, mas para alguma cousa a imaginação nos haveria de servir, se quer que lhe falemos com franqueza, de coração nas mãos, antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que tal sorte.

As intermitências da morte – Saramago

o remédio está em contemporizar

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jun 122015
 

Certos autores, quiçá por adquirida conviccção, ou compleição espiritual naturalmente pouco afeiçoada a indagações pacientes, aborrecem a evidência de não ser sempre linear e explícita a relação entre o que chamamos causa, e o que, por vir depois, chamamos efeito. Alegam esses, e não há que negar lhes razão, que desde que o mundo é mundo, posto ignoremos quando ele começou, nunca se viu um efeito que não tivesse sua causa e que toda causa, seja por predestinação ou simples acção mecânica, ocasionou e ocasionará efeitos, os quais, ponto importante, se produzem instantaneamente, ainda que o trânsito da causa ao efeito tenha escapado à percepção do observador ou só muito tempo depois venha a ser aproximadamente reconstituído. Indo mais longo, com temerário risco, sustentam os ditos autores que todas as causas hoje visíveis e reconhecíveis já produziram os seus efeitos, não tendo nós senão esperar que eles se manifestem, e também, que todos os efeitos, manifestados ou por manifestar, tem suas inelutáveis causalidades, embora as múltiplas insuficiências de que padecemos nos tenham impedido de identifica-las em termos de com eles fazer as respectiva relação, nem sempre linear, nem sempre explícita, como começou por ser dito. Falando agora como toda a gente, e antes que tão trabalhosos raciocínios nos empurrem para problemas mais árduos como a prova pela contingência do mundo em Leibniz ou a prova cosmológica de Kant, com o que em cheio nos encontraríamos a perguntar se Deus existe realmente ou se tem andado a confundir-nos com vaguidades indignas de um ser superior que tudo deveria fazer e dizer muito pelo claro, o que esses autores proclamam é que não vale a pena preocuparmo-nos com o dia de amanhã, porque duma certa maneira, ou de maneira certa, tudo quando vier acontecer aconteceu já, contradição apenas aparente como ficou demonstrado, pois não se pode fazer voltar a pedra à mão que lançou, tão pouco escaparemos nos ao golpe e o ferimento se foi boa a pontaria e por desatenção ou inadvertência do perigo não nos desviámos a tempo. Enfim, viver não é apenas difícil, é quase impossível, mormente naqueles casos em que, não estando a causa à vista, nos esteja interpelando o efeito, se ainda esse nome lhe basta, reclamando que o expliquemos em seus fundamentos e origens, e também como causa que por sua vez já começa a ser, porquanto, como ninguém ignora, em toda esta contradança, a nós é que compete encontrar sentidos e definições, quando o que nos apeteceria seria fechar sossegadamente os olhos e deixar correr um mundo que muito mais nos vem governando do que se deixa, ele, governar. Se tal sucede, isto é, se diante dos olhos temos o que, por todos os sinais e apresentação, tem visos de efeito, e dele não percebemos uma causa imediata ou próxima, o remédio está em contemporizar, em dar tempo ao tempo, já que a espécie humana, sobre a qual, lembremo-lo, embora pareça vir a despropósito, não se conhece outra opinião do que a que ela tem de si própria, está destinada a esperar infinitamente os efeitos e buscar infinitamente as causas, pelo menos é o que, até hoje, infinitamente tem feito.
José Saramago, em “A História do Cerco de Lisboa”

proteja-se contra a escola, a filantropia, o vírus, contra meu triste e errado amor.

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maio 242015
 

O que sinto na gestação do poema? Aponta o lápis que já te digo: que bom se não desse diabetes na minha família, se a doença de Chagas parasse de matar meu povo. A tia não tem, o tio tem, a prima tem, o primo também, a avô, a avó, o irmão tem. Que bom se não desse cáries. O mal de Parkinson ensinou nós todos a dançar. Minha infeliz tia, que em solteira foi, por oito vezes consecutivas, presidente das Filhas de Maria, peleja para comprar uma portinha que vende pão, pirulito e guaraná divinópolis, pro filho dela tomar conta, porque ele não pode com serviço pesado. Ela tem doze mil que sobrou do lote que ela vendeu por trinta, mas a diaba da dona do boteco só vende a espelunca por vinte e cinco, a exploradeira. O meu filho adorado saiu de casa para estudar na escola “Seu saber é pra vencer”. Escola parece guerra. Deixava ele em casa, se pudesse. Que bom seu eu tivesse a saúde pra um fogão de lenha. Levantava cedo e acordava os meus homens: ôi gente, café tá esperando, ninguém vai para a roça hoje não? Levanta Francisco, levanta José, Antônio levanta, Rosa e Maria ficam pra torrar a farinha. O dia cheio, a noite com o crescente no céu, a cafeteira no canto do fogão. No pasto tem cobras, mas no céu tem São Brás e na guarda de cada um o Santo Anjo do Senhor. Eu queria a saia rodada até no pé, eu bonita, mesmo com o cabelo branqueando, a vaidade da prender ele num coque amarrado num lenço de seda para amaciar e proteger da poeira. Sou patronesse da festa de caridade. No meio do jantar eles dizem o meu nome, vou lá na frente com uma etiqueta no peito. Batem palmas pra mim e se estabelece entre nós uma aversão tão grande, o pus da festa se forma, ameaçando a entornar. Aproveito que estou no palco e começo: a verdadeira caridade… Mas então eles põem o som altíssimo e sorteiam os brindes. Sou a primeira e melhor premiada. Batem mais palmas pra mim. Senhor, senhor, porque me abandonaste? O que vai ser de nós? Do meu particular destino? Dos filhos que eu gerei? Visito um por um nas suas camas: Deus te abençoe, Deus te abençoe, volte para ti o Seu rosto, proteja-se contra a escola, a filantropia, o vírus, contra meu triste e errado amor. Vinga o pinto no ovo, vingam as sete crias da cadela ganindo na poeira. Por que não vingará o que Cristo remiu, o que a água do Batismo e seu Sal e seu Óleo prometeram preservar? Meu óvulo cariado trasnmite com precisão a doença ancestral. Os nosso filhos iam ser perfeitos. De asséptico amálgama antecipamos seus cabelos de seda. Reveladores do seu puro sangue iam ser os seus dentes. Que houve então? Este espanto não se pode esconder, não é mesmo? Olha-os dormindo: lábios e pálpebras mal fechados mostram a pupila atingida, o dente partido em diagonal, o leve tremor do que, no sono, insiste nas palavras do seu sonho. Legados com equanimidade os apodrecimentos de nossos pais. Mais que a asma atávica, o medo. Mais que o medo, a palavra cruel que ainda não vão aprender; a forma bruta de olhar. Em culpa, não saber e até com alegria os geramos, os que iam ser deuses. Acaso os desvelamos? Ou existir é que assim irreparável? Por eles nosso amor e a pele do nosso rosto se confrangem, principalmente quando dormem, vulneráveis como homens. Amor eu disse. Não é este o nome do que nunca desiste de soprar uma forma sobre o barro? Galharda, olímpica, passo à frente, esquecida, entre suspiros e cantar d’amores, seu fogo infátuo, o pecado original. Pelo reino deste mundo meu coração suspira, pela saudável beleza, pela longa vida, meus filhos, rebentos de oliveira, ao redor da minha mesa. Não fiz o mundo mas tenho que carregá-lo. Que bom se eu só pudesse gozar. Por uma parte respondo, da outra e maior Deus cuida. Pode-se rezar contra a peste, a fome, a guerra, lutar gota a gota contra o invisível inimigo, na carne, nos corredores da alma, pondo tropeços no amor. Você dá o remédio a seu doente, a gota pinga na barba e cristaliza-se, o sol bate nela, ela rebrilha e seu coração reflui de uma não tristeza, alegria sem guizos, paciência. A ovelha pronta para o sacrifício, ela sabe balir, ela sabe falar, ela escreve, vai parir o poema, começar tudo outra vez.

Adélia Prado – Solte os cachorros