Admitamos que eu seja um tagarela, um tagarela inofensivo, magoado, como todos nós.

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maio 032015
 

“Mas experimenta apaixonar-te cegamente pelo teu sentimento, sem discussão, sem uma causa primeira, repelindo a consciência ao menos durante esse período. Odeia ou ama, apenas para não ficares sentado de braços cruzados. Depois de amanhã, o mais tardar, começarás a odiar-te, porque ludibriastes a ti mesmo, conscientemente. Resultado: uma bolha de sabão e a inércia. Ah, senhores, é possível que me considere um homem inteligente apenas porque, em toda a vida, não pude começar nem acabar coisa alguma. Admitamos que eu seja um tagarela, um tagarela inofensivo, magoado, como todos nós. Mas que fazer, se a destinação única e direta de todo homem inteligente é apenas a tagarelice, uma intencional transferência do oco para o vazio?

Memórias do subsolo – Dostoiévski

continuaram vivendo numa realidade escorregadia momentaneamente capturada pelas palavras

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maio 032015
 

Quando José Arcadio Buendía percebeu que a peste tinha invadido a povoação, reuniu os chefes de família para explicar-lhes o que sabia sobre a doença da insônia, e estabeleceram medidas para impedir que o flagelo se alastrasse para as outras povoações do pantanal. (…) Tão eficaz foi a quarentena, que chegou o dia em que a situação de emergência passou a ser encarada como coisa natural e se organizou a vida de tal maneira que o trabalho retomou o seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar com o inútil costume de dormir. Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira . Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia momentaneamente capturada pelas palavras, mas que de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita. Na entrada do caminho do pântano, puseram um cartaz que dizia Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o passado nas cartas como antes tinha lido o futuro. Com esse recurso, os insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas do baralho, onde o pai se lembrava de si apenas como o homem moreno que havia chegado no princípio de abril, e a mãe se lembrava de si apenas como a mulher trigueira que usava um anel de ouro na mão esquerda e onde uma data de nascimento ficava reduzida à última quarta-feira em que cantou a calhandra no loureiro. Derrotado por aquelas práticas de consolação, José Arcadio Buendía decidiu então construir a máquina da memória, que uma vez tinha desejado para se lembrar dos maravilhosos inventos ciganos. A geringonça se fundamentava na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totalidade dos conhecimentos adquiridos na vida. Imaginava-a como um dicionário giratório que um indivíduo situado no eixo controlar com uma manivela, de modo que em poucas horas passassem diante dos seus olhos as noções mais necessárias para viver.

Gabriel Garcia Marquez – Cem anos de solidão

ela é dura, Carlos, ela não morre.

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abr 052015
 

fogo

A caçada

“Poesia, o perfume que exalas é tua justificação.” –  Carlos Drummond de Andrade

“Piso no rabo dela, ela escapole.

 

(…)

Pé ante pé me achego, é preciso um subagir de gato pra pegar a ladrona.

(…)

Eu, às vezes, fico duas horas de relógio sem fazer nada, ou então desmancho e torno a fazer um barracão, num dia. Tudo truque, disfarce pra pegar ela distraída.

 

(…)

Qualquer negócio eu faço pra conseguir o laço certo. Fiz de fita de pano, ela disse com sua vozinha: quero fita de prata.

 

Fiz de prata, ela disse: quero fita de ouro. Fiz de ouro, ela nem liga. Ela é homem andrógino? Ela é de Deus. Ela parece vida de santo, sem riqueza, sem pompa, sem os brilhos, mas dura, parecendo meio louca, tão serena.

 

Sabe onde a vi outro dia? Num monte de cisco. Como a conheço bem , não fiz nada. Só busquei mais lixo e pus por cima, com cuidado: uma lata, cascas, papéis, tripa de galinha e penas.

 

Ela ficou lá refestelada, tomando sol. Virava de bruços, de costas, eu, de cá, apreciando. Comi um cacho de bananas, um bule de café, de litro, enquanto aproveitava, bem pertinho.

 

Quando cansei, pus fogo no monturo e fui pró meu quarto, me refazer. Pois ela pousou na janela e ficou me olhando, quase boa: uma cinzazinha à-toa, pozinho de carvão que o vento trouxe.

Ela é dura, Carlos, ela não morre.”

 

Adélia Prado – Solte os cachorros

 

amar sem jejum de sentimento.

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ago 252014
 

http://daniellazupo.com/Jornalista/wp-content/uploads/2004/09/Adelia-Prado.jpg

Me disseram outro dia: “Será que você não dá conta de escrever sem falar em Deus, não? Gosto mais quando você escreve sem falar em Deus…” Isso me magoou, me deixou com um talho no peito, os olhos postos em cinza e melancolia, primeiro por causa da coisa mesma, segui porque quem assim me falou eu amo de dar a vida. Eu acho que o homem é religioso como é bípede. Tem Deus no começo e no fim. No meio fica a gente esperneando. Se espernear de acordo, isto é, com sinceridade, esbarra NELE, não tem conversa. Tem gente que grita por gritar, porque acha bonito. Comigo aconteceu, não por mérito meu, está se vendo, que esbarrei cedo. Mais esperneio, mais esbarro e fico puxada, agulha no ímã. Como que eu posso falar de outra coisa? Sofro muito apesar da cara risonha, porque ELE sempre é muito exigidor e fica pedindo coisas difíceis. Tinha muito a tentação de ser pagã. Imaginava que pagão não pagava dízimos, que era só ficar aí, curtindo, lambendo o mel da vida, dançando, saindo no meio do baile, com seu par, procurando um lugar discreto no jardim, pra cochichar no ouvido aquelas coisas boas, segurando na mão da gente, com maciez e quentura. Isso é paraíso, não é? Mas não tem paraíso aqui pra ninguém não. Deus não pega na minha mão. Falar no meu ouvido Ele fala, mas é assim: “Vai, vende tudo que tem, reparte com os pobres e me segue” Não me beija o rosto e ainda me pede a outra face para o bofetão. Mesmo quando me pede em casamento, faz é esponsal místico. Tenho que inaugurar pra mim um jeito novo. Eu falo muito, eu sei disso, mas é só porque ainda não achei minha forma. Quando isto acontecer, vou ficar contida e poderosa, cheia de força como uma nuvem preta expedidora de raio. Santo é assim, não é? Você toca nele e sai uma força que te põe trêmulo e branco. Quero o que se deve querer já que, conforme o mandamento, somos todos chamados à perfeição: é por isso, é por estrito senso de dever que eu quero o mais custoso. Gosto de coisa boa. Me incomoda pensar que pode ser o capeta que lá me confundindo, enchendo a minha cabeça com esta precisão de distinguir, em vez de me dar folga pra viver sem complicação que, pra mim, é o seguinte: comer sem fazer jejum. Amar sem fazer jejum. Ter licença de abrir o coração pra quem eu quiser. Abrir o coração, bem explicado: amar sem jejum de sentimento.

Adélia Prado – Solte os cachorros

sobre uma poesia sem pureza

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dez 222013
 
pes(Foto: Rafael Stedile)

É muito conveniente, em certas horas do dia ou da noite, observar profundamente os objetos em descanso: as rodas que percorreram longas, poeirentas distâncias, suportando grandes cargas vegetais ou minerais, os sacos das carvoarias, os barris, as cestas, os cabos e asas dos instrumentos do carpinteiro. Deles se desprende o contato do homem e da terra como uma lição para o torturado poeta lírico. As superfícies usadas, o gasto que as mãos infligiram às coisas, a atmosfera frequentemente trágica e sempre patética destes objetos infunde uma espécie de atração não desprezível à realidade do mundo.

A confusa impureza dos seres humanos se percebe neles, o agrupamento, uso e desuso dos materiais, as marcas do pé e dos dedos, a constância de uma atmosfera humana inundando as coisas a partir do interno e do externo.

Assim seja a poesia que procuramos, gasta como um ácido pelos deveres da mão, penetrada pelo suor e pela fumaça, cheirando a urina e a açucena salpicada pelas diversas profissões que se exercem dentro e fora da lei.

Uma poesia impura como um traje, como um corpo, com manchas de nutrição, e atitudes vergonhosas, com pregas, observações, sonhos, vigília, profecias, declarações de amor e de ódio, bestas, arrepios, idílios, credos políticos, negações, dúvidas, afirmações, impostos.

A sagrada lei do madrigal e os decretos do tato, olfato, paladas, vista, ouvido, o desejo de justiça, o desejo sexual, o ruído do oceano, sem excluir deliberadamente nada, sem aceitar deliberadamente nada, a entrada na profundidade das coisas num ato de arrebatado amor, e o produto poesia manchado de pombas digitais, com marcas de dentes e gelo, roído talvez levemente pelo suor e pelo uso. Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso, essa suavidade duríssima da madeira manejada pelo orgulhoso ferro. A flor, o trigo, a água têm também essa consistência especial, esse recurso de um magnífico tato.

E não nos esqueçamos nunca da melancolia, do gasto sentimentalismo, perfeitos frutos impuros de maravilhosa qualidade esquecida, deixados de lado pelo frenético livresco: a luz da lua, o cisne ao anoitecer, “vida minha” são sem dúvida o poético elementar e imprescindível. Quem foge do mau gosto cai no gelo.

Pablo Neruda

desliga você

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jul 182013
 

“Um simples telefonema entre namorados (“desliga você”, “não, desliga você”) pode ser interpretado como parte de um plano para sabotar centrais elétricas.”
Verissimo