abr 052015
 

fogo

A caçada

“Poesia, o perfume que exalas é tua justificação.” –  Carlos Drummond de Andrade

“Piso no rabo dela, ela escapole.

 

(…)

Pé ante pé me achego, é preciso um subagir de gato pra pegar a ladrona.

(…)

Eu, às vezes, fico duas horas de relógio sem fazer nada, ou então desmancho e torno a fazer um barracão, num dia. Tudo truque, disfarce pra pegar ela distraída.

 

(…)

Qualquer negócio eu faço pra conseguir o laço certo. Fiz de fita de pano, ela disse com sua vozinha: quero fita de prata.

 

Fiz de prata, ela disse: quero fita de ouro. Fiz de ouro, ela nem liga. Ela é homem andrógino? Ela é de Deus. Ela parece vida de santo, sem riqueza, sem pompa, sem os brilhos, mas dura, parecendo meio louca, tão serena.

 

Sabe onde a vi outro dia? Num monte de cisco. Como a conheço bem , não fiz nada. Só busquei mais lixo e pus por cima, com cuidado: uma lata, cascas, papéis, tripa de galinha e penas.

 

Ela ficou lá refestelada, tomando sol. Virava de bruços, de costas, eu, de cá, apreciando. Comi um cacho de bananas, um bule de café, de litro, enquanto aproveitava, bem pertinho.

 

Quando cansei, pus fogo no monturo e fui pró meu quarto, me refazer. Pois ela pousou na janela e ficou me olhando, quase boa: uma cinzazinha à-toa, pozinho de carvão que o vento trouxe.

Ela é dura, Carlos, ela não morre.”

 

Adélia Prado – Solte os cachorros

 

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