vinte anos luz de jejum e desconto de silêncio e demência

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dez 172015
 

eu sei que este papel está aqui e que não haverá ninguém nenhum outro
nunca nenhures em nenhuma outra parte ninguém para preenchê-lo em meu lugar
e isto poderá ser o fim do jogo mas não haverá prelúdio nem
interlúdio nem poslúdio neste jogo em que enfim estou a sós nada conta
senão esta minha gana de cobrir este papel como se cobre um corpo e
estou só e sôlto nato e morto nulo e outro neste afinal instante lance
em que me entrego todo porque este é o meu troco e são vinte anos vinte
anos luz de jejum e desconto de silêncio e demência deste ponto oco
deste tiro seco abrindo para um beco que se fecha no beco no fio violeta
de um crepúsculo de nuvens ordenhadas vejo tudo e traduzo em escritura
esta fita visível que pende da janela por um aéreo debrum de voltas
remansosas uma casa outra casa o asfalto que desliza por suas raias
grafite esta cidade se esponja como um resto de almoço escorrido em
jornal e no alto se apura em pós e brilhos por um ladrilho de sol
em vidrilhos vibrados esta cidade é um resto é uma cola de outubro
uma goma canicular de envelopes desgrudados e pega neste papel o dócil
papel onde começo meu conto não começo resumo meu espanto num ponto
de papel machucado e sensível como uma ferida de vida aberta e úmida
nada conta senão esta gana esta língua canina áspera que cobre a
ferida de saliva por onde escorre vida e amaranto azul e um prata-
plenilúnio infletem nesse fio de vida galinhas depenadas num açougue
de quartos bovinos bicos cristas despencadas entre pele e gordura
amarela agora dentro de uma esfera de plástico irradiante marrom-rubra
enquanto vozes tilintam e o gelo se dissolve em copos de cristal
a moça vem vestida de vidro verde e coloca dois ratinhos brancos num
tufo de pentelhos o livro poderia estar sendo lido agora por uma
voz tão clara que o som gelaria crisálidas de luz lapidada mas tudo
isto não passa do eco fechado na palavra beco e se vai ver não há nada
nada senão papel murcho e marcado papel pisado esfolado pendendo de
um gancho entre esperma e gordura bovina uma prosa feita de limalha de
prosa barbarela guincha tumultulúbrica neste paradiso psicodélico
que confina com um inferno de moscas murchas e borboletas empaladas
borborigmam cores magmárcidas nesta viscosa placenta do nada
medida por um compasso de coxas branquilongas muslos dançarinos
mordidos por bonecas de dentes-de-sabre vampirogulosas bâmbolas bambinas
farejadoras de carne crua e de novo pende a fita luminosa de novo
a lesma do sol se escorre no asfalto grafite e da janela um olhar
translitera este fio de escrita em morse visível quero dizer que
tudo isto é uma tradução um traduzir para um modo sensível onde algo
se encadeie e complete esta mão do jogo quase se perfez e ainda se
pode ver barbarela estorcendo-se num círculo fálico como um xiva
de luz neon pouco se vai aprender nesta anarcopédia de formas
volúveis senão que o vermelho útil funge os nácares cediços

 

galáxias – haroldo de campos

quem não se arrisca não pode berrar

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nov 272015
 

escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. é o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. nada no bolso e nas mãos. sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. difícil é não correr com os versos debaixo do braço. difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. e sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus. e fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. citação: leve um homem e um boi ao matadouro. o que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. adeusão.

é preciso não ter medo de mostrar o osso e arriscar-se a perder a carne.

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nov 212015
 

Onde cheira a merda
cheira a ser.
o homem podia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto.
(…)
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um osso,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.
(…)
Dois caminhos estavam diante dele:
o do infinito de fora
o do ínfimo de dentro.
E ele escolheu o ínfimo de dentro
onde basta espremer
o pâncreas,
a língua,
o ânus,
ou a glande.
E deus, o próprio deus espremeu o movimento.
É deus um ser?
Se o for, é merda.
Se não o for,
não é.

artaud

quanto abismo cabe na palavra abismo

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jul 192015
 

quanto abismo cabe
na palavra abismo,

quantos passos até a borda
da estrela-pantera-negra,

quantas brumas brancas,
quantos acordes de blues,

quantas noites sem sono
quantos abalos sísmicos

para sossegar o dragão
que cospe fogo azul

chamado névoa, vulcão
solitude?

Ademir Assunção

O ir e vir livremente não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.

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jul 132015
 

ANTI-VIAGEM
Waly Salomão

Toda viagem é inútil,
medito à beira do poço vedado.

Para que abandonar seu albergue,
largar sua carapaça de cágado
e ser impelido corredeira rio abaixo?
Para que essa suspensão do leito
da vida corriqueira, se logo depois
o balão desinfla velozmente e tudo
soa ainda pior que antes pois entra
agora em comparação e desdoiro?

Nenhum habeas corpus
é reconhecido no Tribunal do Júri do Cosmos.
O ir e vir livremente
não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
Ao contrário, a espada de Dâmocles
para sempre paira sobre a esfera do mapa-múndi.
O Atlas é um compasso de ferro
demarcando longitudes e latitudes.

Quem viaja arrisca
uma taxa elevada de lassitudes.
Meu aconchego é o perto,
o conhecido e reconhecido,
o que é despido de espanto
pois está sempre em minha volta,
o que prescinde de consulta
ao arquivo cartográfico.
O familiar é uma camada viscosa,
protetiva e morna
que envolve minha vida
como um pára-choque.

Nunca mais praias nem ilhas inacessíveis,
não me atraem mais
os jardins dos bancos de corais.

Medito à beira da cacimba estanque
logo eu que me supunha amante
ardoroso e fiel
do distante
e cria no provérbio de Blake que diz:
Expect Poison From The Standing Water.
Ou seja:
Aguarde Veneno da Água Parada.

Água Estagnada Secreta Veneno.

Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda

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jul 022015
 

Sal, cal e alho
Caiam no teu maldito caralho. Amém.
O fogo de Sodoma e de Gomorra
Em cinza te reduzam essa porra. Amém.
Tudo em fogo arda,
Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda

Gregório de Matos

o mundo vai parindo o defunto de sua sinopse

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jun 172015
 

W.S.: CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY


A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?

Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido
o que traza marca d’água d’hoje.

Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozonais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.

Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.

E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.

Corrigindo:
………………….o humano fado.
Waly Salomão(1995)

Nalgum lugar faz-se esse homem… Contra a vontade dos pais ele nasce, contra a astúcia da medicina ele cresce, e ama, contra a amargura da política.

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maio 162015
 

Contemplação no Banco

    I

O coração pulverizado range
sob o peso nervoso ou retardado ou tímido
que não deixa marca na alameda, mas deixa
essa estampa vaga no ar, e uma angústia em mim,
espiralante.

Tantos pisam este chão que ele talvez
um dia se humanize. E malaxado,
embebido da fluida substância de nossos segredos,
quem sabe a flor que ai se elabora, calcária, sangüínea ?

Ah, não viver para contemplá-la! Contudo,
não é longo mentar uma flor, e permitido
correr por cima do estreito rio presente,
construir de bruma nosso arco-íris.

Nossos donos temporais ainda não devassaram
o claro estoque de manhãs
que cada um traz no sangue, no vento.

Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar
nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,
e olho para os pés dos homens, e cismo.

Escultura de ar, minhas mãos
te modelam nua e abstrata
para o homem que não serei.

Ele talvez compreenda com todo o corpo,
para além da região minúscula do espírito,
a razão de ser, o ímpeto, a confusa
distribuição, em mim, de seda e péssimo.

II

Nalgum lugar faz-se esse homem…
Contra a vontade dos pais ele nasce,
contra a astúcia da medicina ele cresce,
e ama, contra a amargura da política.

Não lhe convém o débil nome de filho,
pois só a nós mesmos podemos gerar,
e esse nega, sorrindo, a escura fonte.

Irmão lhe chamaria, mas irmão
por quê, se a vida nova
se nutre de outros sais, que não sabemos?

Ele é seu próprio irmão, no dia vasto,
na vasta integração das formas puras,
sublime arrolamento de contrários
enlaçados por fim.

Meu retrato futuro, como te amo,
e mineralmente te pressinto, e sinto
quanto estás longe de nosso vão desenho
e de nossas roucas onomatopéias…

     III

Vejo-te nas ervas pisadas.
O jornal, que aí pousa, mente.

Descubro-te ausente nas esquinas
mais povoadas, e vejo-te incorpóreo,
contudo nítido, sobre o mar oceano.

Chamar-te visão seria
malconhecer as visões
de que é cheio o mundo
e vazio.

Quase posso tocar-te, como às coisas diluculares
que se moldam em nós, e a guarda não captura,
e vingam.

Dissolvendo a cortina de palavras,
tua forma abrange a terra e se desata
à maneira do frio, da chuva, do calor e das lágrimas.

Triste é não ter um verso maior que os literários,
é não compor um verso novo, desorbitado,
para envolver tua efígie lunar, ó quimera
que sobes do chão batido e da relva pobre.

             Carlos Drummond de Andrade, em ‘Claro enigma’, 1951.