eu sei que este papel está aqui e que não haverá ninguém nenhum outro
nunca nenhures em nenhuma outra parte ninguém para preenchê-lo em meu lugar
e isto poderá ser o fim do jogo mas não haverá prelúdio nem
interlúdio nem poslúdio neste jogo em que enfim estou a sós nada conta
senão esta minha gana de cobrir este papel como se cobre um corpo e
estou só e sôlto nato e morto nulo e outro neste afinal instante lance
em que me entrego todo porque este é o meu troco e são vinte anos vinte
anos luz de jejum e desconto de silêncio e demência deste ponto oco
deste tiro seco abrindo para um beco que se fecha no beco no fio violeta
de um crepúsculo de nuvens ordenhadas vejo tudo e traduzo em escritura
esta fita visível que pende da janela por um aéreo debrum de voltas
remansosas uma casa outra casa o asfalto que desliza por suas raias
grafite esta cidade se esponja como um resto de almoço escorrido em
jornal e no alto se apura em pós e brilhos por um ladrilho de sol
em vidrilhos vibrados esta cidade é um resto é uma cola de outubro
uma goma canicular de envelopes desgrudados e pega neste papel o dócil
papel onde começo meu conto não começo resumo meu espanto num ponto
de papel machucado e sensível como uma ferida de vida aberta e úmida
nada conta senão esta gana esta língua canina áspera que cobre a
ferida de saliva por onde escorre vida e amaranto azul e um prata-
plenilúnio infletem nesse fio de vida galinhas depenadas num açougue
de quartos bovinos bicos cristas despencadas entre pele e gordura
amarela agora dentro de uma esfera de plástico irradiante marrom-rubra
enquanto vozes tilintam e o gelo se dissolve em copos de cristal
a moça vem vestida de vidro verde e coloca dois ratinhos brancos num
tufo de pentelhos o livro poderia estar sendo lido agora por uma
voz tão clara que o som gelaria crisálidas de luz lapidada mas tudo
isto não passa do eco fechado na palavra beco e se vai ver não há nada
nada senão papel murcho e marcado papel pisado esfolado pendendo de
um gancho entre esperma e gordura bovina uma prosa feita de limalha de
prosa barbarela guincha tumultulúbrica neste paradiso psicodélico
que confina com um inferno de moscas murchas e borboletas empaladas
borborigmam cores magmárcidas nesta viscosa placenta do nada
medida por um compasso de coxas branquilongas muslos dançarinos
mordidos por bonecas de dentes-de-sabre vampirogulosas bâmbolas bambinas
farejadoras de carne crua e de novo pende a fita luminosa de novo
a lesma do sol se escorre no asfalto grafite e da janela um olhar
translitera este fio de escrita em morse visível quero dizer que
tudo isto é uma tradução um traduzir para um modo sensível onde algo
se encadeie e complete esta mão do jogo quase se perfez e ainda se
pode ver barbarela estorcendo-se num círculo fálico como um xiva
de luz neon pouco se vai aprender nesta anarcopédia de formas
volúveis senão que o vermelho útil funge os nácares cediços
galáxias – haroldo de campos