jul 252015
 

Os lares para a terceira e quarta idades, essas benfazejas
instituições criadas em atenção à tranquilidade das famílias que não têm tempo nem paciência para limpar os ranhos, atender aos esfíncteres fatigados e levantar-se de noite para chegar a arrastadeira, também não tardaram, tal como já o haviam feito os hospitais e as agências funerárias, a vir bater com a cabeça no muro das lamentações. Fazendo justiça a quem se deve, temos de reconhecer que a incerteza em que se encontravam divididos, isto é, continuar ou não continuar a receber hóspedes, era uma das mais angustiantes que poderiam desafiar os esforços equitativos e o talento planificador de qualquer gestor de recursos humanos.
Principalmente porque o resultado final, e isso é o que caracteriza os autênticos dilemas, iria ser sempre o mesmo. Habituados até agora, tal como os seus queixosos parceiros da injecção intravenosa e da coroa de flores com fita roxa, à segurança resultante da contínua e imparável rotação de vidas e mortes, umas que vinham entrando, outras que iam saindo, os lares da terceira e quarta idades não queriam nem pensar num futuro de trabalho em que os objectos dos seus cuidados não mudariam nunca de cara e de corpo, salvo para exibí-los mais lamentáveis em cada dia que passasse, mais decadentes, mais tristemente descompostos, o rosto enrugando-se, prega a prega, igual que uma passa de uva, os membros trémulos e duvidosos, como um barco que inutilmente andasse à procura da bússola que lhe tinha caído ao mar. Um novo hóspede sempre havia sido motivo de regozijo para os lares do feliz ocaso, tinha um nome que seria preciso fixar na memória, hábitos próprios trazidos do mundo exterior, manias que eram só dele, como um certo funcionário aposentado que todos os dias tinha de lavar a fundo a escova de dentes porque não suportava ver nela restos da pasta dentífrica, ou aquela anciã que desenhava árvores genealógicas da sua família e nunca acertava com os nomes que deveria pendurar nos ramos. Durante algumas semanas, até que a rotina nivelasse a atenção devida aos internados, ele seria o novo, o benjamim do grupo, e iria sê-lo pela última vez na vida, ainda que durando ela tanto como a eternidade, esta que, como do sol costuma dizer-se, passou a brilhar para toda a gente deste país afortunado, nós que veremos extinguir-se o astro do dia e continuaremos vivos, ninguém sabe como nem porquê. Agora, porém, o novo hóspede, excepto se ainda veio preencher alguma vaga e arredondar a receita do lar, é alguém cujo destino se conhece de antemão, não o veremos sair daqui para ir morrer a casa ou ao
hospital como acontecia nos bons tempos, enquanto os outros
hóspedes fechavam à chave apressadamente a porta dos seus quartos para que a morte não entrasse e os levasse também a eles, já sabemos que tudo isto são cousas de um passado que não voltará, mas alguém do governo terá de pensar na nossa sorte, nós, patrão, gerente e empregados dos lares do feliz ocaso, o destino que nos espera é não termos ninguém que nos acolha quando chegar a hora em que tenhamos de baixar os braços, reparai que nem sequer somos senhores daquilo que de alguma maneira também havia sido nosso, ao menos pelo trabalho que nos deu durante anos e anos, aqui deverá perceber-se que os empregados tomaram a palavra, o que queremos dizer é que não haverá sítio para estes que somos nos lares do feliz ocaso, salvo se pusermos de lá para fora uns quantos hóspedes, ao governo já lhe tinha ocorrido a mesma ideia quando foi daquele debate sobre a pletora dos hospitais, que a família reassuma as suas obrigações, disseram, mas para isso seria necessário que ainda se encontrasse nela alguém com suficiente tino na cabeça e energias bastantes no resto do corpo, dons cujo prazo de validade, como sabemos por experiência própria e pelo panorama que o mundo oferece, têm a duração de um suspiro se o compararmos com esta eternidade recentemente inaugurada, o remédio, salvo opinião mais abalizada, seria multiplicar os lares do feliz ocaso, não como até agora, aproveitando vivendas e palacetes que em tempos conheceram melhor sorte, mas construindo de raiz grandes edifícios, com a forma de um pentágono, por exemplo, de uma torre de babel, de um labirinto de cnossos, primeiro bairros, depois cidades, depois metrópoles, ou, usando palavras mais cruas, cemitérios de vivos onde a fatal e irrenunciável velhice seria cuidada como deus quisesse, até não se sabe quando, pois os seus dias não teriam fim, o problema bicudo, e para ele nos sentimos no dever de chamar a atenção de quem de direito, é que, como passar do tempo, não só haverá cada vez mais idosos internados nos lares do feliz ocaso, como também será necessária cada vez mais gente para tomar conta deles, dando em resultado que o rombóide das idades virará rapidamente os pés pela cabeça, uma massa gigantesca de velhos lá em cima, sempre em crescimento, engolindo como uma serpente pitão as novas gerações, as quais, por sua vez, na sua maioria convertidas em pessoal de assistência e administração dos lares do feliz ocaso, depois de terem gasto a melhor parte da sua vida a cuidar de velhorros de todas as idades, quer as normais, quer as matusalénicas, multidões de pais, avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós, hexavós, e por aí fora, ad infinitum, se juntarão, uma atrás de outra, como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos outonos pretéritos, mais oü sont les neiges d’antan, do formigueiro interminável dos que, pouco a pouco,levaram a vida a perder os dentes e o cabelo, das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados, dos catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos, dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar nem a baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências, senhores que nos governam, talvez não nos queiram crer, mas o que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e tremor, se terá visto semelhante cousa, dizemo-lo nós que temos a experiência do primeiro lar do feliz ocaso, é certo que então tudo era em ponto pequeno, mas para alguma cousa a imaginação nos haveria de servir, se quer que lhe falemos com franqueza, de coração nas mãos, antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que tal sorte.

As intermitências da morte – Saramago

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