nov 162015
 

O menino que atravessava paredes

Rubi atravessava paredes. Durante os quatro primeiros anos do ensino básico sentou-se sempre à minha frente. Era um menino muito magro, com uns olhos alheados, voz sumida, que preferia ficar sozinho, nos recreios, lendo, do que juntar-se a nós nas brincadeiras. Uma tarde, Chantal anunciou que o vira a passar da sala para o corredor através da parede. Chantal era loira e francesa, a única loira e a única francesa da escola. Isso dava-lhe uma estranha credibilidade. Além disso acho que todos nós estávamos apaixonados por ela.

A seguir a Chantal foi Aristóteles. Aristóteles era sobrinho da proprietária da escola, uma senhora de origem grega, incrivelmente corajosa, ligada ao movimento nacionalista. Em 1992, quando a guerra civil recomeçou, ela foi baleada no rosto e num braço e quase morreu. Fui visitá-la ao hospital. Esperava encontrar a mulher enorme e poderosa que durante anos, muito depois de eu ter deixado o Huambo, me perseguia em sonhos, agitando uma pesada palmatória. Ao invés disso, dei com uma velhinha cansada, tímida, de voz suave. Aristóteles, que tinha a mesma reputação de seriedade da tia, jurava a pés juntos ter visto Rubi atravessar o muro do pátio, enquanto corria atrás de uma bola de futebol.

Quando voltei ao Huambo, mais de 20 anos depois, a cidade encolhera. O meu bairro encolhera. Só as árvores mantinham a proporção original. O pátio da escola, que antes era imenso, parecia agora um pequeno quintal, que uma mangueira, densa e enorme como uma floresta, ameaçava engolir. Encontrei Rubi numa festa, em casa de amigos comuns.

“Diziam que tu atravessavas paredes!” — comentei, quase no fim da festa, depois que a cerveja acabou. Rubi olhou-me muito sério. Os olhos eram ainda os mesmos, absortos e parados, como uma tarde de domingo, sob o sol. Mas só os olhos eram os mesmos. Crescera, engordara, arrastava a voz:

“Diziam isso? De ti diziam que vias no escuro, como os gatos. Naquela época todos nós tínhamos super poderes.” Ficou um instante em silêncio, agitando diante dos meus olhos o copo vazio: “Ainda faço isso. Mas pouco.”

“Isso o quê?”

“Isso de que falavas. Atravessar paredes.”

“Como? Qual o truque?”

“Naquela época não pensava nelas, nas paredes. Ignorava-as. A lua só existe porque olhamos para ela.”

Einstein disse algo semelhante, mas sob a forma de pergunta e em jeito de troça, porque lhe custava a crer em algumas das teses mais bizarras da mecânica quântica. Talvez o meu amigo se interessasse por mecânica quântica.

“Não te deves lembrar, eu lia muito” — prosseguiu Rubi. — “Ler é que me ajudava a atravessar paredes. Mas então o meu pai morreu e eu tive de começar a trabalhar na padaria da família, muito novo, e nunca mais voltei a ler. Comecei a ver paredes em toda a parte. Tinha de andar à procura de portas, mas nem todas essas paredes tinham portas. Um dia acordei, e não me conseguia mexer.”

“Como assim?”

“Assim, simplesmente. Não me conseguia mexer. Levaram-me ao hospital, mas os médicos não encontraram nada de errado. É psicossomático, disseram. Nos primeiros tempos eu dormia, sonhava, e a sonhar andava, corria. Mas passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer.”

“O que aconteceu depois?”

“A minha irmã começou a ler para mim e pouco a pouco voltei ao normal.”

Rubi administra hoje uma rede de padarias. Além disso cria periquitos. Vive dividido entre pães e periquitos. Disse-me que morava sozinho num casarão enorme, do outro lado da rua. Foi só quando se levantou que eu percebi que bebera demais. Amparei-o até a casa e ajudei-o a abrir a porta. O meu antigo colega pousou em mim os olhos lentos. Espetou o dedo indicador da mão direita no meu umbigo:

“Com o tempo a gente descobre que há paredes que estão mesmo lá” — disse. — “Essas ninguém consegue atravessar. Mas há outras que só estão lá quando olhamos para elas, somos nós que as criamos. Essas eu continuo a atravessar.”

Voltei a encontrá-lo uma semana mais tarde, n

O menino que atravessava paredes

Rubi atravessava paredes. Durante os quatro primeiros anos do ensino básico sentou-se sempre à minha frente. Era um menino muito magro, com uns olhos alheados, voz sumida, que preferia ficar sozinho, nos recreios, lendo, do que juntar-se a nós nas brincadeiras. Uma tarde, Chantal anunciou que o vira a passar da sala para o corredor através da parede. Chantal era loira e francesa, a única loira e a única francesa da escola. Isso dava-lhe uma estranha credibilidade. Além disso acho que todos nós estávamos apaixonados por ela.

A seguir a Chantal foi Aristóteles. Aristóteles era sobrinho da proprietária da escola, uma senhora de origem grega, incrivelmente corajosa, ligada ao movimento nacionalista. Em 1992, quando a guerra civil recomeçou, ela foi baleada no rosto e num braço e quase morreu. Fui visitá-la ao hospital. Esperava encontrar a mulher enorme e poderosa que durante anos, muito depois de eu ter deixado o Huambo, me perseguia em sonhos, agitando uma pesada palmatória. Ao invés disso, dei com uma velhinha cansada, tímida, de voz suave. Aristóteles, que tinha a mesma reputação de seriedade da tia, jurava a pés juntos ter visto Rubi atravessar o muro do pátio, enquanto corria atrás de uma bola de futebol.

Quando voltei ao Huambo, mais de 20 anos depois, a cidade encolhera. O meu bairro encolhera. Só as árvores mantinham a proporção original. O pátio da escola, que antes era imenso, parecia agora um pequeno quintal, que uma mangueira, densa e enorme como uma floresta, ameaçava engolir. Encontrei Rubi numa festa, em casa de amigos comuns.

“Diziam que tu atravessavas paredes!” — comentei, quase no fim da festa, depois que a cerveja acabou. Rubi olhou-me muito sério. Os olhos eram ainda os mesmos, absortos e parados, como uma tarde de domingo, sob o sol. Mas só os olhos eram os mesmos. Crescera, engordara, arrastava a voz:

“Diziam isso? De ti diziam que vias no escuro, como os gatos. Naquela época todos nós tínhamos super poderes.” Ficou um instante em silêncio, agitando diante dos meus olhos o copo vazio: “Ainda faço isso. Mas pouco.”

“Isso o quê?”

“Isso de que falavas. Atravessar paredes.”

“Como? Qual o truque?”

“Naquela época não pensava nelas, nas paredes. Ignorava-as. A lua só existe porque olhamos para ela.”

Einstein disse algo semelhante, mas sob a forma de pergunta e em jeito de troça, porque lhe custava a crer em algumas das teses mais bizarras da mecânica quântica. Talvez o meu amigo se interessasse por mecânica quântica.

“Não te deves lembrar, eu lia muito” — prosseguiu Rubi. — “Ler é que me ajudava a atravessar paredes. Mas então o meu pai morreu e eu tive de começar a trabalhar na padaria da família, muito novo, e nunca mais voltei a ler. Comecei a ver paredes em toda a parte. Tinha de andar à procura de portas, mas nem todas essas paredes tinham portas. Um dia acordei, e não me conseguia mexer.”

“Como assim?”

“Assim, simplesmente. Não me conseguia mexer. Levaram-me ao hospital, mas os médicos não encontraram nada de errado. É psicossomático, disseram. Nos primeiros tempos eu dormia, sonhava, e a sonhar andava, corria. Mas passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer.”

“O que aconteceu depois?”

“A minha irmã começou a ler para mim e pouco a pouco voltei ao normal.”

Rubi administra hoje uma rede de padarias. Além disso cria periquitos. Vive dividido entre pães e periquitos. Disse-me que morava sozinho num casarão enorme, do outro lado da rua. Foi só quando se levantou que eu percebi que bebera demais. Amparei-o até a casa e ajudei-o a abrir a porta. O meu antigo colega pousou em mim os olhos lentos. Espetou o dedo indicador da mão direita no meu umbigo:

“Com o tempo a gente descobre que há paredes que estão mesmo lá” — disse. — “Essas ninguém consegue atravessar. Mas há outras que só estão lá quando olhamos para elas, somos nós que as criamos. Essas eu continuo a atravessar.”

Voltei a encontrá-lo uma semana mais tarde, numa outra festa, mas dessa vez estava sóbrio, muito bem vestido e penteado. Cumprimentou-me com certa distância. Quando lhe perguntei, meio a sério, meio a brincar, se nesse dia tinha atravessado alguma parede, fingiu não entender. Ou talvez não tenha entendido mesmo. Alguém me disse, anos mais tarde, que Rubi inventa muito quando bebe e que depois de sóbrio não se lembra de nada. Pode ser.

José Eduardo Agualusa – 16.11.15

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