Se a obra é mais
que a soma das penas
Se a obra é cais
de sombra das pernas
Se a obra traz sonho
maior que as cenas
Se a obra tem pais
e mães e novenas
não a chame de complexa
mas de HUMANA
apenas.
Henrique Sater – 17/11/2012
Se a obra é mais
que a soma das penas
Se a obra é cais
de sombra das pernas
Se a obra traz sonho
maior que as cenas
Se a obra tem pais
e mães e novenas
não a chame de complexa
mas de HUMANA
apenas.
Henrique Sater – 17/11/2012
Lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem
hoje está mais além
das nuvens que escolhe
e mais além do trovão
e da terra firme
demorando-se vem
qual flor desconfiada
que vigia ao sol
sem perguntar-lhe nada
iluminando vem
as últimas janelas
lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem
já se vai aproximando
nunca tem pressa
vem com projetos
e sacos de sementes
com anjos maltratados
e fiéis andorinhas
devagar mas vem
sem fazer muito ruído
cuidando sobretudo
os sonhos proibidos
as recordações dormidas
e as recém-nascidas
lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem
já quase está chegando
com sua melhor notícia
com punhos com olheiras
com noites e com dias
com uma estrela pobre
sem nome ainda
lento mas vem
o futuro real
o mesmo que inventamos
nos mesmos e o acaso
cada vez mais nós mesmos
e menos o acaso
lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem
lento mas vem
lento mas vem
lento mas vem
Mario Benedetti
“Escuta, Iegor Pietróvitch – disse o amigo – o que você faz consigo mesmo? Na realidade, apenas se destrói com o seu desespero; você não tem paciência, nem coragem. Diz agora, num acesso de desânimo, que não tem talento. Não é verdade! Você tem talento, eu lhe assegura. Ele existe em você. Eu vejo isto pelo simples modo como sente e compreende a arte. Vou demonstrar isso com a tua própria vida. Você mesmo me contou como tinha vivido antes. Então você foi vítima, inconscientemente, do mesmo desespero. Foi quando o teu primeiro professor, aquele homem estranho de quem me falaste tanto, despertou em ti, pela primeira vez, o amor à arte e adivinhou o teu talento. Então você o sentiu com a mesma intensidade e angústia com que o está sentindo agora. Mas você mesmo não sabia o que estava acontecendo contigo. Não conseguia viver em casa do proprietário e você mesmo não sabia o que pretendia. O teu professor morreu cedo demais. Deixou-te com aspirações ainda indefinidas e, sobretudo, não te revelou a ti mesmo. Você sentia que precisava de outro caminho, mais largo, que te estavam destinados outros objetivos, mas você não compreendia como isto se realizaria e, na sua angústia, você passou a odiar tudo quanto te cercava. Os teus seis anos de permanente miséria não passaram em vão; você estudava, nessa época, pensava, adquiria consciência de si mesmo e de suas forças, e agora você compreende a arte e a tua destinação. Meu amigo, é preciso ter paciência e coragem. Espera-te uma sorte mais invejável que a minha: você é cem vezes mais artista do que eu; mas que Deus te dê, pelo menos, um décimo da minha paciência. Estude e não beba, como te dizia aquele bom proprietário, e, principalmente, começa tudo de novo, pelo a-bê-cê. O que te aflige? A pobreza, a indigência? Mas a pobreza e a indigência formam um artista. Elas são inevitáveis, no início. Por enquanto, você não é necessário a ninguém; ninguém quer saber de você; assim é o mundo. Espere, e mais coisas acontecerão quando souberem o que você vale. A inveja, a mesquinhez, a ignomínia e, sobretudo, a estupidez vão pressiona-lo mais que a miséria. O talento precisa de simpatia, necessita ser compreendido, mas você verá que semblantes hão de rodear-te quando você atingir ainda que uma ínfima parte do objetivo. Hão de amesquinhar e olhar com desprezo aquilo que você conseguiu à custa de um trabalho árduo, de privações, de fome e de noites de vigília. Os teus companheiros futuros não te animarão, nem hão de consolar-te; não apontarão em você aquilo que tem de bom e de verdadeiro. Mas, com maldosa alegria, destacarão cada erro teu, e hão de te mostrar justamente aquilo que você tem de ruim, aquilo em que se engana e, sob uma aparência de indiferença e desprezo, festejarão cada um dos teus erros (como se existisse alguém infalível). Quanto a você, é arrogante e, muitas vezes, inoportunamente orgulhoso, e te arriscas sempre a ofender alguma nulidade inflada de amor-próprio. Será esse o teu mal; ficarás sozinho contra muitos e vão supliciar-te com alfinetadas. Eu próprio começo a experimentar isso. Anime-se agora! Você ainda não está muito empobrecido, pode ganhar a vida, não despreze o trabalho braçal, vá rachar lenha, como eu rachava nas festinhas de artesãos pobres. Mas você é impaciente, está doente à força de impaciência, não tem suficiente simplicidade, fica maquinando coisas em excesso, pensa demais e faz trabalhar muito a cabeça; você é audacioso em palavras, mas treme quando se trata de empunhar o arco do violino. Tem demasiado amor-próprio, mas escassa coragem. Seia mais ousado, espere, estude e, se não confia em suas forças, atire-se ao acaso; você tem ardor, sentimento. Talvez atinja deste modo o objetivo, mas, caso contrário, avance assim mesmo, ao acaso: de qualquer modo, não perderá, pois o ganho é sempre grande. Sim, o nosso caso, irmão, tem algo de grandioso.”
Niétotchka Niezvânova – Dostoiévski
(enviado por um amigo)
Should we have stayed at home wherever that may be?[1]E não aqui onde o tempo paira e finge repousar-se onde o tempo sonso desata o mau momento quando a carícia distrai o sobressalto e o pranto é mudo e se conhece inútil?
Should we have stayed at home wherever that may be? E não aqui ao relento da memória no sereno do olvido no espanto do que nasce na bacia das almas nos frascos de remédio nas dores automáticas nas frases circunspectas nos solilóquios patéticos?
Should we have stayed at home wherever that may be? E não aqui ondeo anonimato das ruas oprime a conversa que ata e desata na primeira pessoa e o tempo não voa suspenso no beco nem mais nem menos ao sopro dos afetos?
E a mercê dos adjetivos dos sentimentos das metáforas do ridículo das metáforas e da autocomplacência e do tempo que não ata nem desata e do beco suspenso nas doces circunstâncias e das virtudes inúteis ou úteis do orgulho da modéstia e da simpatia anônima? Should we have stayed at home wherever that may be enão aqui na primeira pessoa na primeira pessoa?
Sabe-se lá.
[1] Teria sido melhor ficar em casa, onde quer que isso seja?“Questões de viagem”, Elizabeth Bishop (Tradução: Paulo Henriques Brito).
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-71/poesia/uma-questao-de-viagem
Primeiro a hipnose
leite cândido escorre nas veias
encontra neuroses
traz paz profunda
abismos em picos delirantes
sólidos vazios cheios de sono.
Segundo a alucinação
ópio legalizado em minhas entranhas
me alcança no abismo
fulgaz alegria descontrolada
insights em flashes eufóricos
voláteis ácidos vazios de dor.
Enfim a paralisia
veneno curarizado inunda as fibras
persegue meu vôo
mordaz êxito compulsório
golpes em músculos fundantes
paréticos dardos sem movimento.
Dão-me o sono
rápido tiram
alucinam-me
e logo congelam
cadáver vivo
morte controlada
veneno posológico
sem overdose.
Não é preciso mais cirurgias
para desfrutar de tal movimento.
Basta um corpo quente
e um espírito escaldado.
Logo conhece-se o sono
atinge-lhe o vazio
ignora-se a dor
e súbito se reconhece
anestesiado
paralítico
estático
com todas as seringas intactas.
Henrique Sater – 11/9/2012
Cada dia ao lado
a tua presença
a nossa presença
nada emergente
válvula de segurança
nunca acionada
amor não perecível
rotina amarrada:
as escovas de dente
a roupa lavada
o uso irracional de papel higiênico
o sabonete da genitália
os filmes das genitálias
os filmes (sem genitálias)
e a dificuldade de escolhê-los
a janta enlatada
o chegar de madrugada
e a raiva do alarme porvir
o atraso em minutos
e a espera com surtos
o café de anteontem
a louça da noite
a insônia forçada
o alarme atrasado
as escovas de dente.
Rotina amarrada
rotina forçada
procura um sorriso
encontra um pedido
procura um conforto
não entende a piada
procura um abraço
ganha e não cura
procura a paixão
encontra nas fotos
esquece dos gestos
mas nunca dos pratos
mas nunca dos fatos
esta conversa
nada emergente
aquele jardim
precisa da gente
a fruta na sala
do dia seguinte
perece primeiro
mas ela não sente
já o nosso amor
espera, mas mente
que nunca dará
a última volta
que acionará
a trágica válvula
que separará
as escovas de dente.
Henrique Sater 30/5/2012
a cada segundo
o segundo me passa
no momento que pára
o ponteiro me olha
eu rápido calo
e o segundo retoma
meu olhar que era dele
agora se embaça
mais uma vez
pa
ssa
pá
ra
pa
ssa
e a cada parada
me olha contente
achando que engana
quem acha que pára
mesmo se viro
sei que não pára
a cada estalada
pausa no nada
e o nada se move
quando retoma
acha que anda
e eu tenho certeza
que mesmo parado
anda-e-não-anda
no-nada-des-anda.
Henrique Sater
23/8/2012
(Pablo Neruda)
Acontece que me canso de ser homem.
acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
murcho, impenetrável, como um cisne de feltro
navegando numa água de origem cinza.
O cheiro das barbearias me faz chorar aos gritos.
Só quero um descanso de pedras ou de lã,
só quero não ver mais estabelecimentos ou jardins,
nem mercadorias, nem óculos, nem elevadores.
Acontece que me canso dos meus pés e das minhas unhas
e do meu cabelo e da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.
No entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou dar a morte a uma freira com um golpe de orelha.
seria belo
ir pelas ruas com um punhal verde
e dando gritos até morrer de frio.
Não quero continuar sendo raiz nas trevas,
vacilante, estendido, tiritando de sono
para baixo, nas tripas molhadas da terra,
absorvendo e pensando, comendo cada dia.
Não quero para mim tantas desgraças.
não quero continuar de raiz e túmulo,
de subterrâneo solitário, de adega com mortos,
inteiriçado, morrendo de aflição.
Por isso a segunda-feira arde como o petróleo
quando me vê chegar com a minha cara de prisão,
e uiva no seu transcurso como roda ferida,
e dá passos de sangue quente em direção à noite.
E me empurra para certos recantos, para certas casas úmidas,
para hospitais de onde os ossos saem pela janela,
para certas sapatarias com cheiro de vinagre,
para ruas horríveis como gretas.
Há pássaros cor de enxofre e horríveis intestinos
pendurados nas portas das casas que odeio, há
dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos,
que deviam ter chorado de vergonha e espanto,
há guarda-chuvas por todas as partes, e venenos e umbigos.
Eu passeio com calma, com olhos, com sapatos,
com fúria, com esquecimento,
passo, cruzo escritórios e lojas de ortopedia,
e pátios onde há roupas penduradas num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.
Quem fala que sou esquisito hermético
É porque não dou sopa estou sempre elétrico
Nada que se aproxima nada me é estranho
Fulano sicrano e beltrano
Seja pedra seja planta seja bicho seja humano
Quando quero saber o que ocorre a minha volta
Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
Experimento tudo nunca me iludo
Quero crer no que vem por ao beco escuro
Me iludo passando presente futuro
Revir na palma da mão o dado
Presente futuro passado
Tudo sentir de todas as maneiras
É a chave de ouro do meu jogo
De minha mais alta razão
Na seqüência de diferentes naipes
Quem fala de mim tem paixão.
Porque o momento
no qual a palavra feliz
é pronunciada,
jamais é o momento feliz.
… Porque quem morre de sede
não pronuncia sua sede
Porque na boca da classe operária
não existe a palavra classe operária.
Porque quem desespera
não tem vontade de dizer:
“Sou um desesperado”.
Porque orgasmo e orgasmo
não são conciliáveis.
Porque o moribundo em vez de alegar:
“Estou morrendo”
só deixa perceber um ruído surdo
que não compreendemos.
Porque são os vivos
que chateiam os mortos
com suas notícias catastróficas.
Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais
Porque, portanto,
é sempre um outro,
sempre um outro
quem fala por aí,
e porque aquele
do qual se fala
se cala.
HANS MAGNUS ENZENSBERGER