jun 122015
 

Certos autores, quiçá por adquirida conviccção, ou compleição espiritual naturalmente pouco afeiçoada a indagações pacientes, aborrecem a evidência de não ser sempre linear e explícita a relação entre o que chamamos causa, e o que, por vir depois, chamamos efeito. Alegam esses, e não há que negar lhes razão, que desde que o mundo é mundo, posto ignoremos quando ele começou, nunca se viu um efeito que não tivesse sua causa e que toda causa, seja por predestinação ou simples acção mecânica, ocasionou e ocasionará efeitos, os quais, ponto importante, se produzem instantaneamente, ainda que o trânsito da causa ao efeito tenha escapado à percepção do observador ou só muito tempo depois venha a ser aproximadamente reconstituído. Indo mais longo, com temerário risco, sustentam os ditos autores que todas as causas hoje visíveis e reconhecíveis já produziram os seus efeitos, não tendo nós senão esperar que eles se manifestem, e também, que todos os efeitos, manifestados ou por manifestar, tem suas inelutáveis causalidades, embora as múltiplas insuficiências de que padecemos nos tenham impedido de identifica-las em termos de com eles fazer as respectiva relação, nem sempre linear, nem sempre explícita, como começou por ser dito. Falando agora como toda a gente, e antes que tão trabalhosos raciocínios nos empurrem para problemas mais árduos como a prova pela contingência do mundo em Leibniz ou a prova cosmológica de Kant, com o que em cheio nos encontraríamos a perguntar se Deus existe realmente ou se tem andado a confundir-nos com vaguidades indignas de um ser superior que tudo deveria fazer e dizer muito pelo claro, o que esses autores proclamam é que não vale a pena preocuparmo-nos com o dia de amanhã, porque duma certa maneira, ou de maneira certa, tudo quando vier acontecer aconteceu já, contradição apenas aparente como ficou demonstrado, pois não se pode fazer voltar a pedra à mão que lançou, tão pouco escaparemos nos ao golpe e o ferimento se foi boa a pontaria e por desatenção ou inadvertência do perigo não nos desviámos a tempo. Enfim, viver não é apenas difícil, é quase impossível, mormente naqueles casos em que, não estando a causa à vista, nos esteja interpelando o efeito, se ainda esse nome lhe basta, reclamando que o expliquemos em seus fundamentos e origens, e também como causa que por sua vez já começa a ser, porquanto, como ninguém ignora, em toda esta contradança, a nós é que compete encontrar sentidos e definições, quando o que nos apeteceria seria fechar sossegadamente os olhos e deixar correr um mundo que muito mais nos vem governando do que se deixa, ele, governar. Se tal sucede, isto é, se diante dos olhos temos o que, por todos os sinais e apresentação, tem visos de efeito, e dele não percebemos uma causa imediata ou próxima, o remédio está em contemporizar, em dar tempo ao tempo, já que a espécie humana, sobre a qual, lembremo-lo, embora pareça vir a despropósito, não se conhece outra opinião do que a que ela tem de si própria, está destinada a esperar infinitamente os efeitos e buscar infinitamente as causas, pelo menos é o que, até hoje, infinitamente tem feito.
José Saramago, em “A História do Cerco de Lisboa”

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