Lento mas vem…

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out 292012
 

Lento mas vem

o futuro se aproxima

devagar

mas vem

hoje está mais além

das nuvens que escolhe

e mais além do trovão

e da terra firme

demorando-se vem

qual flor desconfiada

que vigia ao sol

sem perguntar-lhe nada

iluminando vem

as últimas janelas

lento mas vem

o futuro se aproxima

devagar

mas vem

já se vai aproximando

nunca tem pressa

vem com projetos

e sacos de sementes

com anjos maltratados

e fiéis andorinhas

devagar mas vem

sem fazer muito ruído

cuidando sobretudo

os sonhos proibidos

as recordações dormidas

e as recém-nascidas

lento mas vem

o futuro se aproxima

devagar

mas vem

já quase está chegando

com sua melhor notícia

com punhos com olheiras

com noites e com dias

com uma estrela pobre

sem nome ainda

lento mas vem

o futuro real

o mesmo que inventamos

nos mesmos e o acaso

cada vez mais nós mesmos

e menos o acaso

lento mas vem

o futuro se aproxima

devagar

mas vem

lento mas vem

lento mas vem

lento mas vem

Mario Benedetti

Uma questão de viagem

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set 172012
 

Should we have stayed at home wherever that may be?[1]E não aqui onde o tempo paira e finge repousar-se onde o tempo sonso desata o mau momento quando a carícia distrai o sobressalto e o pranto é mudo e se conhece inútil?

Should we have stayed at home wherever that may be? E não aqui ao relento da memória no sereno do olvido no espanto do que nasce na bacia das almas nos frascos de remédio nas dores automáticas nas frases circunspectas nos solilóquios patéticos?

Should we have stayed at home wherever that may be? E não aqui ondeo anonimato das ruas oprime a conversa que ata e desata na primeira pessoa e o tempo não voa suspenso no beco nem mais nem menos ao sopro dos afetos?

E a mercê dos adjetivos dos sentimentos das metáforas do ridículo das metáforas e da autocomplacência e do tempo que não ata nem desata e do beco suspenso nas doces circunstâncias e das virtudes inúteis ou úteis do orgulho da modéstia e da simpatia anônima? Should we have stayed at home wherever that may be enão aqui na primeira pessoa na primeira pessoa?

Sabe-se lá.
[1] Teria sido melhor ficar em casa, onde quer que isso seja?“Questões de viagem”, Elizabeth Bishop (Tradução: Paulo Henriques Brito).

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-71/poesia/uma-questao-de-viagem

Anestesiado

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set 142012
 

Primeiro a hipnose
leite cândido escorre nas veias
encontra neuroses
traz paz profunda
abismos em picos delirantes
sólidos vazios cheios de sono.

Segundo a alucinação
ópio legalizado em minhas entranhas
me alcança no abismo
fulgaz alegria descontrolada
insights em flashes eufóricos
voláteis ácidos vazios de dor.

Enfim a paralisia
veneno curarizado inunda as fibras
persegue meu vôo
mordaz êxito compulsório
golpes em músculos fundantes
paréticos dardos sem movimento.

Dão-me o sono
rápido tiram
alucinam-me
e logo congelam
cadáver vivo
morte controlada
veneno posológico
sem overdose.

Não é preciso mais cirurgias
para desfrutar de tal movimento.
Basta um corpo quente
e um espírito escaldado.
Logo conhece-se o sono
atinge-lhe o vazio
ignora-se a dor
e súbito se reconhece
anestesiado
paralítico
estático
com todas as seringas intactas.

Henrique Sater –  11/9/2012

Trágica válvula

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ago 292012
 

Cada dia ao lado
a tua presença
a nossa presença
nada emergente
válvula de segurança
nunca acionada
amor não perecível
rotina amarrada:
as escovas de dente
a roupa lavada
o uso irracional de papel higiênico
o sabonete da genitália
os filmes das genitálias
os filmes (sem genitálias)
e a dificuldade de escolhê-los
a janta enlatada
o chegar de madrugada
e a raiva do alarme porvir
o atraso em minutos
e a espera com surtos
o café de anteontem
a louça da noite
a insônia forçada
o alarme atrasado
as escovas de dente.

Rotina amarrada
rotina forçada
procura um sorriso
encontra um pedido
procura um conforto
não entende a piada
procura um abraço
ganha e não cura
procura a paixão
encontra nas fotos
esquece dos gestos
mas nunca dos pratos
mas nunca dos fatos
esta conversa
nada emergente
aquele jardim
precisa da gente
a fruta na sala
do dia seguinte
perece primeiro
mas ela não sente
já o nosso amor
espera, mas mente
que nunca dará
a última volta
que acionará
a trágica válvula
que separará
as escovas de dente.

Henrique Sater 30/5/2012

tic-tac da dialética

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ago 242012
 


a cada segundo
o segundo me passa
no momento que pára
o ponteiro me olha
eu rápido calo
e o segundo retoma
meu olhar que era dele
agora se embaça
mais uma vez
pa
ssa

ra
pa
ssa
e a cada parada
me olha contente
achando que engana
quem acha que pára

mesmo se viro
sei que não pára
a cada estalada
pausa no nada
e o nada se move
quando retoma
acha que anda
e eu tenho certeza
que mesmo parado
anda-e-não-anda
no-nada-des-anda.

Henrique Sater
23/8/2012

Walking Around

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ago 192012
 

(Pablo Neruda)

Acontece que me canso de ser homem.
acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
murcho, impenetrável, como um cisne de feltro
navegando numa água de origem cinza.

O cheiro das barbearias me faz chorar aos gritos.
Só quero um descanso de pedras ou de lã,
só quero não ver mais estabelecimentos ou jardins,
nem mercadorias, nem óculos, nem elevadores.

Acontece que me canso dos meus pés e das minhas unhas
e do meu cabelo e da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

No entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou dar a morte a uma freira com um golpe de orelha.
seria belo
ir pelas ruas com um punhal verde
e dando gritos até morrer de frio.

Não quero continuar sendo raiz nas trevas,
vacilante, estendido, tiritando de sono
para baixo, nas tripas molhadas da terra,
absorvendo e pensando, comendo cada dia.

Não quero para mim tantas desgraças.
não quero continuar de raiz e túmulo,
de subterrâneo solitário, de adega com mortos,
inteiriçado, morrendo de aflição.

Por isso a segunda-feira arde como o petróleo
quando me vê chegar com a minha cara de prisão,
e uiva no seu transcurso como roda ferida,
e dá passos de sangue quente em direção à noite.

E me empurra para certos recantos, para certas casas úmidas,
para hospitais de onde os ossos saem pela janela,
para certas sapatarias com cheiro de vinagre,
para ruas horríveis como gretas.

Há pássaros cor de enxofre e horríveis intestinos
pendurados nas portas das casas que odeio, há
dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos,
que deviam ter chorado de vergonha e espanto,
há guarda-chuvas por todas as partes, e venenos e umbigos.

Eu passeio com calma, com olhos, com sapatos,
com fúria, com esquecimento,
passo, cruzo escritórios e lojas de ortopedia,
e pátios onde há roupas penduradas num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.

Olho de lince

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ago 162012
 

Quem fala que sou esquisito hermético
É porque não dou sopa estou sempre elétrico
Nada que se aproxima nada me é estranho
Fulano sicrano e beltrano
Seja pedra seja planta seja bicho seja humano
Quando quero saber o que ocorre a minha volta
Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
Experimento tudo nunca me iludo
Quero crer no que vem por ao beco escuro
Me iludo passando presente futuro
Revir na palma da mão o dado
Presente futuro passado
Tudo sentir de todas as maneiras
É a chave de ouro do meu jogo
De minha mais alta razão
Na seqüência de diferentes naipes
Quem fala de mim tem paixão.

Razões adicionais para os Poetas mentirem

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jul 262012
 

Porque o momento
no qual a palavra feliz
é pronunciada,
jamais é o momento feliz.
… Porque quem morre de sede
não pronuncia sua sede
Porque na boca da classe operária
não existe a palavra classe operária.
Porque quem desespera
não tem vontade de dizer:
“Sou um desesperado”.
Porque orgasmo e orgasmo
não são conciliáveis.
Porque o moribundo em vez de alegar:
“Estou morrendo”
só deixa perceber um ruído surdo
que não compreendemos.
Porque são os vivos
que chateiam os mortos
com suas notícias catastróficas.
Porque as palavras chegam tarde demais,
ou cedo demais
Porque, portanto,
é sempre um outro,
sempre um outro
quem fala por aí,
e porque aquele
do qual se fala
se cala.

HANS MAGNUS ENZENSBERGER

Pesadelo

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jun 252012
 

Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta

E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto

(…)

Maurício Tapajós / Paulo César Pinheiro

mosaicos de existência

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jun 132012
 

Duas costuras de mosaicos de existência
Ali repousavam lado a lado.

Sob estrutura vil, a primeira parecia regojizar-se
através de seu busto perfeitamente lapidado.
A música de Schubert acalmava-lhe os espíritos;
o óleo ainda fresco transparecia cores cuidadosamente escolhidas.
O grande caixão comportava seu pequenino corpo
Que os poucos dias não permitiram que se desenvolvesse
O grande cerimonial não comportava o pequenino espaço
Que os muitos músicos não permitiam que ninguém passasse.

Num minúsculo canto, a segunda parecia à vontade
através de suas rugas assimetricamente esculpidas.
O ruído daqueles instrumentos era deveras incômodo
um gigantesco quadro parecia um carnaval abstrato demais
O pequenino caixão mal comportava seu grande corpo
Que duros anos permitiram que perecesse.
O cerimonial ainda estava por existir no espaço
Que só três ônibus até lá permitiam que algum familiar chegasse.

Subitamente, um discurso se pronunciou.
“A vida é curta, a arte é longa” – dizia, um senhor bem vestido.
Olhando profundamente nos olhos dos presentes.
Prantos melancólicos e desesperados.

Do pequeno canto, o outro mosaico.
Sentia a vida dos presentes.
Procurando a arte que não sente.
Preso na memória dos por vir
Presos pelas amarras do presente.

Henrique Sater – 14/10/2010