Claro que está tudo errado, qualquer sacristão bobo sabe disso

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maio 222016
 

O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigado bem o meu quintal, porque hoje me gritou: “do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a senhora quer vender umas panelas pra ela.” Me desgostou muito a forma de pedir, o pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do Osmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendo que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pra tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi uma bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventei um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que o dono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos são limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não. Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração pedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo no que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra Dona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho pagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse sem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me pedir cinqüenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra lá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim: “Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar.” Posso mesmo. Por que então, meu Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas fico dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateada com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu vivia acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agora envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo mais uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquer sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos da terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive. Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: “do-o-na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?” Este batido durou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depois foi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com Dona Alvina. Bibia falava: “mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a senhora e o pai muito bobos.” Não podia aplaudir a menina, mas por seguro matutamos: a voz das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa da Alvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas onde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar a taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que ele arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem se lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele é inteira.

 

adélia prado

instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar

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jan 202016
 

«AS MULHERES TÊM FIOS DESLIGADOS
-António Lobo Antunes

Há uns tempos a Joana
-Pai, acabei um namoro à homem
Perguntei como era acabar um namoro à homem e vai a miúda
– Disse-lhe o problema não está em ti, está em mim
O que me fez pensar como as mulheres são corajosas e os homens cobardes. Em primeiro lugar só terminam uma relação quando têm outra. Em segundo lugar são incapazes de
-já não gosto de ti
De
-não quero mais
Chegam com discursos vagos, circulares
-preciso de tempo para pensar
-não é que não te ame, amo-te, mas tenho de ficar sozinho umas semanas
Ou declarações do género de
– tu mereces melhor
-estive a reflectir e acho que já não te faço feliz
-necessito de um mês de solidão para sentir a tua falta
E aos amigos
-dá-me os parabéns que lá consegui livrar-me da chata
-custou mas foi
-amandei-lhe aquelas lérias do costume e a gaja engoliu
-chora um dia ou dois e passa-lhe
E pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres. Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam: entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar (chichi, sede, fome, a janela de que esqueceram de fechar o estore ) ou fingem que dormem porque não há paciência para abraços e festinhas, pá e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarrados à gente, no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo? Lembro-me de um sujeito que explicava
– o maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é pensar que durante uma semana estou safo
E depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las.
O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
– as mulheres têm os fios desligados
E outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa pare que comecem a trabalhar outra vez. Meus Deus, que pena me dão as mulheres. Se informam
-já não gosto de ti
Se informam
-não quero mais
Aí estão eles alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos, ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores, eles que nunca mandavam a colocarem-se de plantão À porta dado que aquela p*** há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes-pagas, cenas ridículas, gritos. A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, Che Guevara ou eu, e eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhes caia na sorte um caramelo que passe À frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede-fome-persianas-mal-descidas-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
– O problema não está em ti está em mim a mexerem a faca na mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Schubert. De Ovídio. De Horácio, de Vergílio. De Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde idiota, desonesto.
Fui
(espero que não muitas vezes)
rasca. Volta e meia surge-me na cabeça uma frase do Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde de mais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc…, que mulher não ouviu bugigangas destas? Uma mulher contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
– mereces melhor que eu
levou com a resposta
– pois mereço. Rua.
Enfim, mais ou menos isto, e estou a ver a cara dele à banda. Nem uma lágrima para amostra. Rua. A mesma lágrima para amostra. Rua. A mesma amiga para uma amiga sua.
– o que faço às cartas de amor que me escreveu?
e a amiga sua
– Manda-lhas. Pode ser que façam falta.
Fazem de certeza: é só copiar mudando o nome. Perguntei à minha amiga
– E depois de ele se ir embora?
– Depois chorei um bocado e passou-me.
Ontem jantámos juntos. Fumámos um cigarro no automóvel dela, fui para casa e comecei a escrever isto. Palavra de honra que vi na janela uma árvore a sorrir-me. Podem não acreditar mas uma árvore a sorrir-me.»

vinte anos luz de jejum e desconto de silêncio e demência

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dez 172015
 

eu sei que este papel está aqui e que não haverá ninguém nenhum outro
nunca nenhures em nenhuma outra parte ninguém para preenchê-lo em meu lugar
e isto poderá ser o fim do jogo mas não haverá prelúdio nem
interlúdio nem poslúdio neste jogo em que enfim estou a sós nada conta
senão esta minha gana de cobrir este papel como se cobre um corpo e
estou só e sôlto nato e morto nulo e outro neste afinal instante lance
em que me entrego todo porque este é o meu troco e são vinte anos vinte
anos luz de jejum e desconto de silêncio e demência deste ponto oco
deste tiro seco abrindo para um beco que se fecha no beco no fio violeta
de um crepúsculo de nuvens ordenhadas vejo tudo e traduzo em escritura
esta fita visível que pende da janela por um aéreo debrum de voltas
remansosas uma casa outra casa o asfalto que desliza por suas raias
grafite esta cidade se esponja como um resto de almoço escorrido em
jornal e no alto se apura em pós e brilhos por um ladrilho de sol
em vidrilhos vibrados esta cidade é um resto é uma cola de outubro
uma goma canicular de envelopes desgrudados e pega neste papel o dócil
papel onde começo meu conto não começo resumo meu espanto num ponto
de papel machucado e sensível como uma ferida de vida aberta e úmida
nada conta senão esta gana esta língua canina áspera que cobre a
ferida de saliva por onde escorre vida e amaranto azul e um prata-
plenilúnio infletem nesse fio de vida galinhas depenadas num açougue
de quartos bovinos bicos cristas despencadas entre pele e gordura
amarela agora dentro de uma esfera de plástico irradiante marrom-rubra
enquanto vozes tilintam e o gelo se dissolve em copos de cristal
a moça vem vestida de vidro verde e coloca dois ratinhos brancos num
tufo de pentelhos o livro poderia estar sendo lido agora por uma
voz tão clara que o som gelaria crisálidas de luz lapidada mas tudo
isto não passa do eco fechado na palavra beco e se vai ver não há nada
nada senão papel murcho e marcado papel pisado esfolado pendendo de
um gancho entre esperma e gordura bovina uma prosa feita de limalha de
prosa barbarela guincha tumultulúbrica neste paradiso psicodélico
que confina com um inferno de moscas murchas e borboletas empaladas
borborigmam cores magmárcidas nesta viscosa placenta do nada
medida por um compasso de coxas branquilongas muslos dançarinos
mordidos por bonecas de dentes-de-sabre vampirogulosas bâmbolas bambinas
farejadoras de carne crua e de novo pende a fita luminosa de novo
a lesma do sol se escorre no asfalto grafite e da janela um olhar
translitera este fio de escrita em morse visível quero dizer que
tudo isto é uma tradução um traduzir para um modo sensível onde algo
se encadeie e complete esta mão do jogo quase se perfez e ainda se
pode ver barbarela estorcendo-se num círculo fálico como um xiva
de luz neon pouco se vai aprender nesta anarcopédia de formas
volúveis senão que o vermelho útil funge os nácares cediços

 

galáxias – haroldo de campos

quem não se arrisca não pode berrar

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nov 272015
 

escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. é o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. nada no bolso e nas mãos. sabendo: perigoso, divino, maravilhoso. poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. difícil é não correr com os versos debaixo do braço. difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. e sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus. e fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. citação: leve um homem e um boi ao matadouro. o que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. adeusão.

é preciso não ter medo de mostrar o osso e arriscar-se a perder a carne.

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nov 212015
 

Onde cheira a merda
cheira a ser.
o homem podia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto.
(…)
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um osso,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.
(…)
Dois caminhos estavam diante dele:
o do infinito de fora
o do ínfimo de dentro.
E ele escolheu o ínfimo de dentro
onde basta espremer
o pâncreas,
a língua,
o ânus,
ou a glande.
E deus, o próprio deus espremeu o movimento.
É deus um ser?
Se o for, é merda.
Se não o for,
não é.

artaud

passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer

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nov 162015
 

O menino que atravessava paredes

Rubi atravessava paredes. Durante os quatro primeiros anos do ensino básico sentou-se sempre à minha frente. Era um menino muito magro, com uns olhos alheados, voz sumida, que preferia ficar sozinho, nos recreios, lendo, do que juntar-se a nós nas brincadeiras. Uma tarde, Chantal anunciou que o vira a passar da sala para o corredor através da parede. Chantal era loira e francesa, a única loira e a única francesa da escola. Isso dava-lhe uma estranha credibilidade. Além disso acho que todos nós estávamos apaixonados por ela.

A seguir a Chantal foi Aristóteles. Aristóteles era sobrinho da proprietária da escola, uma senhora de origem grega, incrivelmente corajosa, ligada ao movimento nacionalista. Em 1992, quando a guerra civil recomeçou, ela foi baleada no rosto e num braço e quase morreu. Fui visitá-la ao hospital. Esperava encontrar a mulher enorme e poderosa que durante anos, muito depois de eu ter deixado o Huambo, me perseguia em sonhos, agitando uma pesada palmatória. Ao invés disso, dei com uma velhinha cansada, tímida, de voz suave. Aristóteles, que tinha a mesma reputação de seriedade da tia, jurava a pés juntos ter visto Rubi atravessar o muro do pátio, enquanto corria atrás de uma bola de futebol.

Quando voltei ao Huambo, mais de 20 anos depois, a cidade encolhera. O meu bairro encolhera. Só as árvores mantinham a proporção original. O pátio da escola, que antes era imenso, parecia agora um pequeno quintal, que uma mangueira, densa e enorme como uma floresta, ameaçava engolir. Encontrei Rubi numa festa, em casa de amigos comuns.

“Diziam que tu atravessavas paredes!” — comentei, quase no fim da festa, depois que a cerveja acabou. Rubi olhou-me muito sério. Os olhos eram ainda os mesmos, absortos e parados, como uma tarde de domingo, sob o sol. Mas só os olhos eram os mesmos. Crescera, engordara, arrastava a voz:

“Diziam isso? De ti diziam que vias no escuro, como os gatos. Naquela época todos nós tínhamos super poderes.” Ficou um instante em silêncio, agitando diante dos meus olhos o copo vazio: “Ainda faço isso. Mas pouco.”

“Isso o quê?”

“Isso de que falavas. Atravessar paredes.”

“Como? Qual o truque?”

“Naquela época não pensava nelas, nas paredes. Ignorava-as. A lua só existe porque olhamos para ela.”

Einstein disse algo semelhante, mas sob a forma de pergunta e em jeito de troça, porque lhe custava a crer em algumas das teses mais bizarras da mecânica quântica. Talvez o meu amigo se interessasse por mecânica quântica.

“Não te deves lembrar, eu lia muito” — prosseguiu Rubi. — “Ler é que me ajudava a atravessar paredes. Mas então o meu pai morreu e eu tive de começar a trabalhar na padaria da família, muito novo, e nunca mais voltei a ler. Comecei a ver paredes em toda a parte. Tinha de andar à procura de portas, mas nem todas essas paredes tinham portas. Um dia acordei, e não me conseguia mexer.”

“Como assim?”

“Assim, simplesmente. Não me conseguia mexer. Levaram-me ao hospital, mas os médicos não encontraram nada de errado. É psicossomático, disseram. Nos primeiros tempos eu dormia, sonhava, e a sonhar andava, corria. Mas passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer.”

“O que aconteceu depois?”

“A minha irmã começou a ler para mim e pouco a pouco voltei ao normal.”

Rubi administra hoje uma rede de padarias. Além disso cria periquitos. Vive dividido entre pães e periquitos. Disse-me que morava sozinho num casarão enorme, do outro lado da rua. Foi só quando se levantou que eu percebi que bebera demais. Amparei-o até a casa e ajudei-o a abrir a porta. O meu antigo colega pousou em mim os olhos lentos. Espetou o dedo indicador da mão direita no meu umbigo:

“Com o tempo a gente descobre que há paredes que estão mesmo lá” — disse. — “Essas ninguém consegue atravessar. Mas há outras que só estão lá quando olhamos para elas, somos nós que as criamos. Essas eu continuo a atravessar.”

Voltei a encontrá-lo uma semana mais tarde, n

O menino que atravessava paredes

Rubi atravessava paredes. Durante os quatro primeiros anos do ensino básico sentou-se sempre à minha frente. Era um menino muito magro, com uns olhos alheados, voz sumida, que preferia ficar sozinho, nos recreios, lendo, do que juntar-se a nós nas brincadeiras. Uma tarde, Chantal anunciou que o vira a passar da sala para o corredor através da parede. Chantal era loira e francesa, a única loira e a única francesa da escola. Isso dava-lhe uma estranha credibilidade. Além disso acho que todos nós estávamos apaixonados por ela.

A seguir a Chantal foi Aristóteles. Aristóteles era sobrinho da proprietária da escola, uma senhora de origem grega, incrivelmente corajosa, ligada ao movimento nacionalista. Em 1992, quando a guerra civil recomeçou, ela foi baleada no rosto e num braço e quase morreu. Fui visitá-la ao hospital. Esperava encontrar a mulher enorme e poderosa que durante anos, muito depois de eu ter deixado o Huambo, me perseguia em sonhos, agitando uma pesada palmatória. Ao invés disso, dei com uma velhinha cansada, tímida, de voz suave. Aristóteles, que tinha a mesma reputação de seriedade da tia, jurava a pés juntos ter visto Rubi atravessar o muro do pátio, enquanto corria atrás de uma bola de futebol.

Quando voltei ao Huambo, mais de 20 anos depois, a cidade encolhera. O meu bairro encolhera. Só as árvores mantinham a proporção original. O pátio da escola, que antes era imenso, parecia agora um pequeno quintal, que uma mangueira, densa e enorme como uma floresta, ameaçava engolir. Encontrei Rubi numa festa, em casa de amigos comuns.

“Diziam que tu atravessavas paredes!” — comentei, quase no fim da festa, depois que a cerveja acabou. Rubi olhou-me muito sério. Os olhos eram ainda os mesmos, absortos e parados, como uma tarde de domingo, sob o sol. Mas só os olhos eram os mesmos. Crescera, engordara, arrastava a voz:

“Diziam isso? De ti diziam que vias no escuro, como os gatos. Naquela época todos nós tínhamos super poderes.” Ficou um instante em silêncio, agitando diante dos meus olhos o copo vazio: “Ainda faço isso. Mas pouco.”

“Isso o quê?”

“Isso de que falavas. Atravessar paredes.”

“Como? Qual o truque?”

“Naquela época não pensava nelas, nas paredes. Ignorava-as. A lua só existe porque olhamos para ela.”

Einstein disse algo semelhante, mas sob a forma de pergunta e em jeito de troça, porque lhe custava a crer em algumas das teses mais bizarras da mecânica quântica. Talvez o meu amigo se interessasse por mecânica quântica.

“Não te deves lembrar, eu lia muito” — prosseguiu Rubi. — “Ler é que me ajudava a atravessar paredes. Mas então o meu pai morreu e eu tive de começar a trabalhar na padaria da família, muito novo, e nunca mais voltei a ler. Comecei a ver paredes em toda a parte. Tinha de andar à procura de portas, mas nem todas essas paredes tinham portas. Um dia acordei, e não me conseguia mexer.”

“Como assim?”

“Assim, simplesmente. Não me conseguia mexer. Levaram-me ao hospital, mas os médicos não encontraram nada de errado. É psicossomático, disseram. Nos primeiros tempos eu dormia, sonhava, e a sonhar andava, corria. Mas passado algum tempo começaram a crescer paredes também dentro dos meus sonhos e nem neles eu me conseguia mexer.”

“O que aconteceu depois?”

“A minha irmã começou a ler para mim e pouco a pouco voltei ao normal.”

Rubi administra hoje uma rede de padarias. Além disso cria periquitos. Vive dividido entre pães e periquitos. Disse-me que morava sozinho num casarão enorme, do outro lado da rua. Foi só quando se levantou que eu percebi que bebera demais. Amparei-o até a casa e ajudei-o a abrir a porta. O meu antigo colega pousou em mim os olhos lentos. Espetou o dedo indicador da mão direita no meu umbigo:

“Com o tempo a gente descobre que há paredes que estão mesmo lá” — disse. — “Essas ninguém consegue atravessar. Mas há outras que só estão lá quando olhamos para elas, somos nós que as criamos. Essas eu continuo a atravessar.”

Voltei a encontrá-lo uma semana mais tarde, numa outra festa, mas dessa vez estava sóbrio, muito bem vestido e penteado. Cumprimentou-me com certa distância. Quando lhe perguntei, meio a sério, meio a brincar, se nesse dia tinha atravessado alguma parede, fingiu não entender. Ou talvez não tenha entendido mesmo. Alguém me disse, anos mais tarde, que Rubi inventa muito quando bebe e que depois de sóbrio não se lembra de nada. Pode ser.

José Eduardo Agualusa – 16.11.15

eu não me farei mais perguntas

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nov 142015
 

Onde agora? Quando agora? Quem agora? Sem me perguntar isso. Dizer eu. Sem o pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir adiante. Pode ser que um dia, primeiro passo, vá, eu tenha simplesmente ficado, no qual, em vez de sair, segundo um velhohábito, passar o dia e a noite tão longe quanto possível de casa, não era longe. Pode ter começado assim. Eu não me farei mais perguntas.

beckett – o inominável

mixtape 33 – 9.11.15

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nov 092015
 

capa

Coração do Mar – A mulher do fim do mundo Elza Soares A Mulher do Fim do Mundo 1 2015 Other 01. Coração do Mar – A mulher do fim do mundo.mp3
Sikey Rokia Traoré Beautiful Africa 2 2013 02. Sikey.mp3
Minha Estrela Di Melo Di Melo 3 1975 03. Minha Estrela.mp3
Dança Elza Soares A Mulher do Fim do Mundo 4 2015 Other 04. Dança.mp3
Place to be Hiromi live 5 2008 05. Place to be.mp3
Mississippi Goddam Nina Simone live 6 1965 06. Mississippi Goddam.mp3
Primavera Nos Dentes Secos & Molhados Secos e Molhados 7 1973 World 07. Primavera Nos Dentes.mp3
Solidão Chico Chico e Julia Vargas vivo 8 2013 08. Solidão.mp3
Vuelvo al sur Renato Braz e Maogani Canela 9 2015 09. Vuelvo al sur.mp3

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eu faria delas o que elas devem ser

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ago 232015
 

começa pelo olho, mas em breve é tudo. Uma poeira que cai ou rebenta nas superfícies. Se tivesse a certeza de que ao fim destas palavras meu corpo rolasse fulminado, eu faria delas o que elas devem ser, eu as conduziria a sua última ignição, eu concluiria o ciclo de seu tempo, levaria ao fim o impulso inicial estagnado nesta aridez utilitária em cujo púcaro as forças se destroem. Ou não faria. Não faria: uma vileza inata a meu ser trai em seu fulcro todo movimento para fora de mim: porque este é um tempo meu, e eu sou a fome e o alimento de meu cansaço: e eu sou esse cansaço comendo o meu peito. Porque eu sou só o clarão dessa carnificina, o halo desse espetáculo da ideia. Sou a força contra essa imobilidade e o fogo obscuro minando com a sua língua a fonte dessa força. Estamos no reino da palavra, e tudo que aqui sopra é verbo, e uma solidão irremissível.

o inferno – gullar