é uma mera questão de tempo

 Textos  Comentários desativados em é uma mera questão de tempo
ago 062015
 

Em poucas palavras se conta, e aqui a vamos deixar para ilustração das novas gerações que a desconhecem, com a esperança de que não trocem dela por ingénua e sentimental. Atenção, pois, à lição de moral. Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho.
Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia.
Estavam as cousas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos.
E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos.
No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tornou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô.
Foram palavras santas. Caíram as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai já não.
Do que veio a passar-se depois não há sinal na história, mas de ciência mui certa sabemos que se é verdade que o trabalho do rapazinho ficou em meio, também é verdade que o pedaço de madeira continua a andar por ali. Ninguém o quis queimar ou deitar fora, quer fosse para que a lição do exemplo não viesse a cair no esquecimento, quer fosse para o caso de que a alguém lhe ocorresse um dia a ideia de terminar a obra, eventualidade não de todo impossível de produzir-se se tivermos em conta a enorme capacidade de sobrevivência dos ditos lados escuros da natureza humana.
Como já alguém disse, tudo o que possa suceder, sucederá, é uma mera questão de tempo, e, se não chegámos a vê-lo enquanto por cá andávamos, terá sido só porque não tínhamos vivido o suficiente.

As intermitências da morte – Saramago

como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos outonos pretéritos

 Textos  Comentários desativados em como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos outonos pretéritos
jul 252015
 

Os lares para a terceira e quarta idades, essas benfazejas
instituições criadas em atenção à tranquilidade das famílias que não têm tempo nem paciência para limpar os ranhos, atender aos esfíncteres fatigados e levantar-se de noite para chegar a arrastadeira, também não tardaram, tal como já o haviam feito os hospitais e as agências funerárias, a vir bater com a cabeça no muro das lamentações. Fazendo justiça a quem se deve, temos de reconhecer que a incerteza em que se encontravam divididos, isto é, continuar ou não continuar a receber hóspedes, era uma das mais angustiantes que poderiam desafiar os esforços equitativos e o talento planificador de qualquer gestor de recursos humanos.
Principalmente porque o resultado final, e isso é o que caracteriza os autênticos dilemas, iria ser sempre o mesmo. Habituados até agora, tal como os seus queixosos parceiros da injecção intravenosa e da coroa de flores com fita roxa, à segurança resultante da contínua e imparável rotação de vidas e mortes, umas que vinham entrando, outras que iam saindo, os lares da terceira e quarta idades não queriam nem pensar num futuro de trabalho em que os objectos dos seus cuidados não mudariam nunca de cara e de corpo, salvo para exibí-los mais lamentáveis em cada dia que passasse, mais decadentes, mais tristemente descompostos, o rosto enrugando-se, prega a prega, igual que uma passa de uva, os membros trémulos e duvidosos, como um barco que inutilmente andasse à procura da bússola que lhe tinha caído ao mar. Um novo hóspede sempre havia sido motivo de regozijo para os lares do feliz ocaso, tinha um nome que seria preciso fixar na memória, hábitos próprios trazidos do mundo exterior, manias que eram só dele, como um certo funcionário aposentado que todos os dias tinha de lavar a fundo a escova de dentes porque não suportava ver nela restos da pasta dentífrica, ou aquela anciã que desenhava árvores genealógicas da sua família e nunca acertava com os nomes que deveria pendurar nos ramos. Durante algumas semanas, até que a rotina nivelasse a atenção devida aos internados, ele seria o novo, o benjamim do grupo, e iria sê-lo pela última vez na vida, ainda que durando ela tanto como a eternidade, esta que, como do sol costuma dizer-se, passou a brilhar para toda a gente deste país afortunado, nós que veremos extinguir-se o astro do dia e continuaremos vivos, ninguém sabe como nem porquê. Agora, porém, o novo hóspede, excepto se ainda veio preencher alguma vaga e arredondar a receita do lar, é alguém cujo destino se conhece de antemão, não o veremos sair daqui para ir morrer a casa ou ao
hospital como acontecia nos bons tempos, enquanto os outros
hóspedes fechavam à chave apressadamente a porta dos seus quartos para que a morte não entrasse e os levasse também a eles, já sabemos que tudo isto são cousas de um passado que não voltará, mas alguém do governo terá de pensar na nossa sorte, nós, patrão, gerente e empregados dos lares do feliz ocaso, o destino que nos espera é não termos ninguém que nos acolha quando chegar a hora em que tenhamos de baixar os braços, reparai que nem sequer somos senhores daquilo que de alguma maneira também havia sido nosso, ao menos pelo trabalho que nos deu durante anos e anos, aqui deverá perceber-se que os empregados tomaram a palavra, o que queremos dizer é que não haverá sítio para estes que somos nos lares do feliz ocaso, salvo se pusermos de lá para fora uns quantos hóspedes, ao governo já lhe tinha ocorrido a mesma ideia quando foi daquele debate sobre a pletora dos hospitais, que a família reassuma as suas obrigações, disseram, mas para isso seria necessário que ainda se encontrasse nela alguém com suficiente tino na cabeça e energias bastantes no resto do corpo, dons cujo prazo de validade, como sabemos por experiência própria e pelo panorama que o mundo oferece, têm a duração de um suspiro se o compararmos com esta eternidade recentemente inaugurada, o remédio, salvo opinião mais abalizada, seria multiplicar os lares do feliz ocaso, não como até agora, aproveitando vivendas e palacetes que em tempos conheceram melhor sorte, mas construindo de raiz grandes edifícios, com a forma de um pentágono, por exemplo, de uma torre de babel, de um labirinto de cnossos, primeiro bairros, depois cidades, depois metrópoles, ou, usando palavras mais cruas, cemitérios de vivos onde a fatal e irrenunciável velhice seria cuidada como deus quisesse, até não se sabe quando, pois os seus dias não teriam fim, o problema bicudo, e para ele nos sentimos no dever de chamar a atenção de quem de direito, é que, como passar do tempo, não só haverá cada vez mais idosos internados nos lares do feliz ocaso, como também será necessária cada vez mais gente para tomar conta deles, dando em resultado que o rombóide das idades virará rapidamente os pés pela cabeça, uma massa gigantesca de velhos lá em cima, sempre em crescimento, engolindo como uma serpente pitão as novas gerações, as quais, por sua vez, na sua maioria convertidas em pessoal de assistência e administração dos lares do feliz ocaso, depois de terem gasto a melhor parte da sua vida a cuidar de velhorros de todas as idades, quer as normais, quer as matusalénicas, multidões de pais, avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós, hexavós, e por aí fora, ad infinitum, se juntarão, uma atrás de outra, como folhas que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos outonos pretéritos, mais oü sont les neiges d’antan, do formigueiro interminável dos que, pouco a pouco,levaram a vida a perder os dentes e o cabelo, das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados, dos catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos, dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar nem a baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências, senhores que nos governam, talvez não nos queiram crer, mas o que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e tremor, se terá visto semelhante cousa, dizemo-lo nós que temos a experiência do primeiro lar do feliz ocaso, é certo que então tudo era em ponto pequeno, mas para alguma cousa a imaginação nos haveria de servir, se quer que lhe falemos com franqueza, de coração nas mãos, antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que tal sorte.

As intermitências da morte – Saramago

quanto abismo cabe na palavra abismo

 Poemas  Comentários desativados em quanto abismo cabe na palavra abismo
jul 192015
 

quanto abismo cabe
na palavra abismo,

quantos passos até a borda
da estrela-pantera-negra,

quantas brumas brancas,
quantos acordes de blues,

quantas noites sem sono
quantos abalos sísmicos

para sossegar o dragão
que cospe fogo azul

chamado névoa, vulcão
solitude?

Ademir Assunção

O ir e vir livremente não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.

 Poemas  Comentários desativados em O ir e vir livremente não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
jul 132015
 

ANTI-VIAGEM
Waly Salomão

Toda viagem é inútil,
medito à beira do poço vedado.

Para que abandonar seu albergue,
largar sua carapaça de cágado
e ser impelido corredeira rio abaixo?
Para que essa suspensão do leito
da vida corriqueira, se logo depois
o balão desinfla velozmente e tudo
soa ainda pior que antes pois entra
agora em comparação e desdoiro?

Nenhum habeas corpus
é reconhecido no Tribunal do Júri do Cosmos.
O ir e vir livremente
não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
Ao contrário, a espada de Dâmocles
para sempre paira sobre a esfera do mapa-múndi.
O Atlas é um compasso de ferro
demarcando longitudes e latitudes.

Quem viaja arrisca
uma taxa elevada de lassitudes.
Meu aconchego é o perto,
o conhecido e reconhecido,
o que é despido de espanto
pois está sempre em minha volta,
o que prescinde de consulta
ao arquivo cartográfico.
O familiar é uma camada viscosa,
protetiva e morna
que envolve minha vida
como um pára-choque.

Nunca mais praias nem ilhas inacessíveis,
não me atraem mais
os jardins dos bancos de corais.

Medito à beira da cacimba estanque
logo eu que me supunha amante
ardoroso e fiel
do distante
e cria no provérbio de Blake que diz:
Expect Poison From The Standing Water.
Ou seja:
Aguarde Veneno da Água Parada.

Água Estagnada Secreta Veneno.

Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda

 Poemas  Comentários desativados em Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda
jul 022015
 

Sal, cal e alho
Caiam no teu maldito caralho. Amém.
O fogo de Sodoma e de Gomorra
Em cinza te reduzam essa porra. Amém.
Tudo em fogo arda,
Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda

Gregório de Matos

o mundo vai parindo o defunto de sua sinopse

 Poemas  Comentários desativados em o mundo vai parindo o defunto de sua sinopse
jun 172015
 

W.S.: CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY


A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?

Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido
o que traza marca d’água d’hoje.

Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozonais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.

Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.

E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.

Corrigindo:
………………….o humano fado.
Waly Salomão(1995)

o remédio está em contemporizar

 Textos  Comentários desativados em o remédio está em contemporizar
jun 122015
 

Certos autores, quiçá por adquirida conviccção, ou compleição espiritual naturalmente pouco afeiçoada a indagações pacientes, aborrecem a evidência de não ser sempre linear e explícita a relação entre o que chamamos causa, e o que, por vir depois, chamamos efeito. Alegam esses, e não há que negar lhes razão, que desde que o mundo é mundo, posto ignoremos quando ele começou, nunca se viu um efeito que não tivesse sua causa e que toda causa, seja por predestinação ou simples acção mecânica, ocasionou e ocasionará efeitos, os quais, ponto importante, se produzem instantaneamente, ainda que o trânsito da causa ao efeito tenha escapado à percepção do observador ou só muito tempo depois venha a ser aproximadamente reconstituído. Indo mais longo, com temerário risco, sustentam os ditos autores que todas as causas hoje visíveis e reconhecíveis já produziram os seus efeitos, não tendo nós senão esperar que eles se manifestem, e também, que todos os efeitos, manifestados ou por manifestar, tem suas inelutáveis causalidades, embora as múltiplas insuficiências de que padecemos nos tenham impedido de identifica-las em termos de com eles fazer as respectiva relação, nem sempre linear, nem sempre explícita, como começou por ser dito. Falando agora como toda a gente, e antes que tão trabalhosos raciocínios nos empurrem para problemas mais árduos como a prova pela contingência do mundo em Leibniz ou a prova cosmológica de Kant, com o que em cheio nos encontraríamos a perguntar se Deus existe realmente ou se tem andado a confundir-nos com vaguidades indignas de um ser superior que tudo deveria fazer e dizer muito pelo claro, o que esses autores proclamam é que não vale a pena preocuparmo-nos com o dia de amanhã, porque duma certa maneira, ou de maneira certa, tudo quando vier acontecer aconteceu já, contradição apenas aparente como ficou demonstrado, pois não se pode fazer voltar a pedra à mão que lançou, tão pouco escaparemos nos ao golpe e o ferimento se foi boa a pontaria e por desatenção ou inadvertência do perigo não nos desviámos a tempo. Enfim, viver não é apenas difícil, é quase impossível, mormente naqueles casos em que, não estando a causa à vista, nos esteja interpelando o efeito, se ainda esse nome lhe basta, reclamando que o expliquemos em seus fundamentos e origens, e também como causa que por sua vez já começa a ser, porquanto, como ninguém ignora, em toda esta contradança, a nós é que compete encontrar sentidos e definições, quando o que nos apeteceria seria fechar sossegadamente os olhos e deixar correr um mundo que muito mais nos vem governando do que se deixa, ele, governar. Se tal sucede, isto é, se diante dos olhos temos o que, por todos os sinais e apresentação, tem visos de efeito, e dele não percebemos uma causa imediata ou próxima, o remédio está em contemporizar, em dar tempo ao tempo, já que a espécie humana, sobre a qual, lembremo-lo, embora pareça vir a despropósito, não se conhece outra opinião do que a que ela tem de si própria, está destinada a esperar infinitamente os efeitos e buscar infinitamente as causas, pelo menos é o que, até hoje, infinitamente tem feito.
José Saramago, em “A História do Cerco de Lisboa”

proteja-se contra a escola, a filantropia, o vírus, contra meu triste e errado amor.

 Textos  Comentários desativados em proteja-se contra a escola, a filantropia, o vírus, contra meu triste e errado amor.
maio 242015
 

O que sinto na gestação do poema? Aponta o lápis que já te digo: que bom se não desse diabetes na minha família, se a doença de Chagas parasse de matar meu povo. A tia não tem, o tio tem, a prima tem, o primo também, a avô, a avó, o irmão tem. Que bom se não desse cáries. O mal de Parkinson ensinou nós todos a dançar. Minha infeliz tia, que em solteira foi, por oito vezes consecutivas, presidente das Filhas de Maria, peleja para comprar uma portinha que vende pão, pirulito e guaraná divinópolis, pro filho dela tomar conta, porque ele não pode com serviço pesado. Ela tem doze mil que sobrou do lote que ela vendeu por trinta, mas a diaba da dona do boteco só vende a espelunca por vinte e cinco, a exploradeira. O meu filho adorado saiu de casa para estudar na escola “Seu saber é pra vencer”. Escola parece guerra. Deixava ele em casa, se pudesse. Que bom seu eu tivesse a saúde pra um fogão de lenha. Levantava cedo e acordava os meus homens: ôi gente, café tá esperando, ninguém vai para a roça hoje não? Levanta Francisco, levanta José, Antônio levanta, Rosa e Maria ficam pra torrar a farinha. O dia cheio, a noite com o crescente no céu, a cafeteira no canto do fogão. No pasto tem cobras, mas no céu tem São Brás e na guarda de cada um o Santo Anjo do Senhor. Eu queria a saia rodada até no pé, eu bonita, mesmo com o cabelo branqueando, a vaidade da prender ele num coque amarrado num lenço de seda para amaciar e proteger da poeira. Sou patronesse da festa de caridade. No meio do jantar eles dizem o meu nome, vou lá na frente com uma etiqueta no peito. Batem palmas pra mim e se estabelece entre nós uma aversão tão grande, o pus da festa se forma, ameaçando a entornar. Aproveito que estou no palco e começo: a verdadeira caridade… Mas então eles põem o som altíssimo e sorteiam os brindes. Sou a primeira e melhor premiada. Batem mais palmas pra mim. Senhor, senhor, porque me abandonaste? O que vai ser de nós? Do meu particular destino? Dos filhos que eu gerei? Visito um por um nas suas camas: Deus te abençoe, Deus te abençoe, volte para ti o Seu rosto, proteja-se contra a escola, a filantropia, o vírus, contra meu triste e errado amor. Vinga o pinto no ovo, vingam as sete crias da cadela ganindo na poeira. Por que não vingará o que Cristo remiu, o que a água do Batismo e seu Sal e seu Óleo prometeram preservar? Meu óvulo cariado trasnmite com precisão a doença ancestral. Os nosso filhos iam ser perfeitos. De asséptico amálgama antecipamos seus cabelos de seda. Reveladores do seu puro sangue iam ser os seus dentes. Que houve então? Este espanto não se pode esconder, não é mesmo? Olha-os dormindo: lábios e pálpebras mal fechados mostram a pupila atingida, o dente partido em diagonal, o leve tremor do que, no sono, insiste nas palavras do seu sonho. Legados com equanimidade os apodrecimentos de nossos pais. Mais que a asma atávica, o medo. Mais que o medo, a palavra cruel que ainda não vão aprender; a forma bruta de olhar. Em culpa, não saber e até com alegria os geramos, os que iam ser deuses. Acaso os desvelamos? Ou existir é que assim irreparável? Por eles nosso amor e a pele do nosso rosto se confrangem, principalmente quando dormem, vulneráveis como homens. Amor eu disse. Não é este o nome do que nunca desiste de soprar uma forma sobre o barro? Galharda, olímpica, passo à frente, esquecida, entre suspiros e cantar d’amores, seu fogo infátuo, o pecado original. Pelo reino deste mundo meu coração suspira, pela saudável beleza, pela longa vida, meus filhos, rebentos de oliveira, ao redor da minha mesa. Não fiz o mundo mas tenho que carregá-lo. Que bom se eu só pudesse gozar. Por uma parte respondo, da outra e maior Deus cuida. Pode-se rezar contra a peste, a fome, a guerra, lutar gota a gota contra o invisível inimigo, na carne, nos corredores da alma, pondo tropeços no amor. Você dá o remédio a seu doente, a gota pinga na barba e cristaliza-se, o sol bate nela, ela rebrilha e seu coração reflui de uma não tristeza, alegria sem guizos, paciência. A ovelha pronta para o sacrifício, ela sabe balir, ela sabe falar, ela escreve, vai parir o poema, começar tudo outra vez.

Adélia Prado – Solte os cachorros