dor não é amargura.

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maio 102015
 

Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

a brisa esfola o escalpo dos credores

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abr 292015
 

cavalos de exu trancam as ruas, escopetas
cospem línguas de fogo, o mar avança
sobre as marquises dos bancos, coiotes atacam
pastores nos templos, caem as muralhas
dos shoppings de Tebas, a brisa esfola
o escalpo dos credores, o sol mergulha
num ocaso de trevas, pilantras se ferram
na noite de horrores, ferve no inferno
o sangue dos larápios, centauros libertam
reféns nas UTIs, os gângsteres
dos planos de saúde são devorados, os cabos
das tevês estão todos cortados.

ademir assunção – a noite dos exus

não se permite nunca mais olhares tensões de cismas crises e outros tempos

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abr 092015
 

Literato cantabile

Torquato Neto

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

ela é dura, Carlos, ela não morre.

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abr 052015
 

fogo

A caçada

“Poesia, o perfume que exalas é tua justificação.” –  Carlos Drummond de Andrade

“Piso no rabo dela, ela escapole.

 

(…)

Pé ante pé me achego, é preciso um subagir de gato pra pegar a ladrona.

(…)

Eu, às vezes, fico duas horas de relógio sem fazer nada, ou então desmancho e torno a fazer um barracão, num dia. Tudo truque, disfarce pra pegar ela distraída.

 

(…)

Qualquer negócio eu faço pra conseguir o laço certo. Fiz de fita de pano, ela disse com sua vozinha: quero fita de prata.

 

Fiz de prata, ela disse: quero fita de ouro. Fiz de ouro, ela nem liga. Ela é homem andrógino? Ela é de Deus. Ela parece vida de santo, sem riqueza, sem pompa, sem os brilhos, mas dura, parecendo meio louca, tão serena.

 

Sabe onde a vi outro dia? Num monte de cisco. Como a conheço bem , não fiz nada. Só busquei mais lixo e pus por cima, com cuidado: uma lata, cascas, papéis, tripa de galinha e penas.

 

Ela ficou lá refestelada, tomando sol. Virava de bruços, de costas, eu, de cá, apreciando. Comi um cacho de bananas, um bule de café, de litro, enquanto aproveitava, bem pertinho.

 

Quando cansei, pus fogo no monturo e fui pró meu quarto, me refazer. Pois ela pousou na janela e ficou me olhando, quase boa: uma cinzazinha à-toa, pozinho de carvão que o vento trouxe.

Ela é dura, Carlos, ela não morre.”

 

Adélia Prado – Solte os cachorros

 

um diamante gerado pela combustão, como rescaldo final de incêndio.

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jan 292015
 

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“Minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos de filtros alquímicos
e não da causalidade natural.
Ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.”

minha alegria – waly salomão

tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo

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dez 242014
 

lince

quem fala que sou esquisito hermético
é porque não dou sopa estou sempre elétrico
nada que se aproxima nada me é estranho
fulano sicrano beltrano
seja pedra seja planta seja bicho seja humano
quando quero saber o que ocorre à minha volta
ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
experimento invento tudo nunca jamais me iludo
quero crer no que vem por aí beco escuro
me iludo passado presente futuro
urro arre i urro
viro balanço reviro na palma da mão o dado
futuro presente passado
tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo
é fósforo que acende o fogo da minha mais alta razão
e na seqüência de diferentes naipes
quem fala de mim tem paixão

Waly Salomão – Olho de Lince

Quizá mi única noción de patria sea esta urgencia de decir Nosotros

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dez 212014
 

benedettiCuando resido en este país que no sueña
cuando vivo en esta ciudad sin párpados
donde sin embargo mi mujer me entiende
y ha quedado mi infancia y envejecen mis padres
y llamo a mis amigos de vereda a vereda
y puedo ver los árboles desde mi ventana
olvidados y torpes a las tres de la tarde
siento que algo me cerca y me oprime
como si una sombra espesa y decisiva
descendiera sobre mí y sobre nosotros
para encubrir a ese alguien que siempre afloja
el viejo detonador de la esperanza.

Cuando vivo en esta ciudad sin lágrimas
que se ha vuelto egoísta de puro generosa
que ha perdido su ánimo sin haberlo gastado
pienso que al fin ha llegado el momento
de decir adiós a algunas presunciones
de alejarse tal vez y hablar otros idiomas
donde la indiferencia sea una palabra obsena.
(…)

Quizá mi única noción de patria
sea esta urgencia de decir Nosotros
quizá mi única noción de patria
sea este regreso al propio desconcierto.

Mario Benedetti – Noción de Patria

Prometi nunca render-me ao verso fácil.

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dez 072014
 

 

sorrisoA RAZÃO DO POEMA

Prometi nunca render-me
ao verso fácil.
À poesia-nuvem
fluida substância sem contorno.
Não fuja do meu sangue o verso vago,
alheio ao barro amargo do Tempo.

Eu quis o gume,
a aresta,
o vinco.

Recusei o lírio
das feiras semanais das flores mortas.

Eu quero um poema-dor,
arrancado aos pedaços
da carne da vida.
Aqui está ele
sangrando meus dedos
no cimento da cela.

A poesia não marca hora.
Hoje, como há trinta anos,
está nos jornais.
Foi pisada,
cuspida,
torturada:
contra todas as formas de morte
floresce.

Eu a encontrei num dia de chuva,
durante o combate.
Trazia um vento de Liberdade na boca
e a metralhadora nas mãos.

Ensinou-me o fogo
e a palavra.
Lavrou-me nos pés o roteiro
dos caminhos que percorrerei:

nenhuma dor visite a cada de meu irmão
sem se fazer lágrima nos meus olhos.
Nenhuma investida dos cavaleiros da morte
será silenciada.
E se vier a tortura, ou a morte,
a marcha para o sol reuniá
os pedaços dispersos do meu corpo…
E o canto do Povo sobre a cidade aberta
não me surpreenderá adormecido.

Pedro Tierra – A palavra contra o muro

Que a sobre-humana poesia pica e envenena um homem.

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ago 112014
 

caran

Deslizo,
oculto aqui,
vigiando o oco do tempo.
Espaço ermo, parado.
Nada acontece. Nada parece acontecer.
Mas algo flui, o irremediável,
queimando todas as pontes de regresso.
Todo o passado está morto;
só vige o que vem, o que surge.
Todas as coisas íntegras dilaceram-se
ou são dilaceradas.
A velha senhora viajada,
detentora de recorde de milhagens,
temerosa das vacas do Ganges
depois de ter contemplado um berne
ao microscópio.
Berne que agora corrompe e torna pútrida
qualquer carne verde que ela vê
pois seu olho holografa
o esqueleto subjacente a todo corpo vivo.
Viver em mudança.

O assoalho repleto das peles velhas das cobras
e do pêlo felpudo das aranhas caranguejeiras.
Viver em mudança.
Que a sobre-humana poesia pica e envenena um
homem.

Waly Salomão (1994 – Algaravias)